Tradução culinária e ensino

Tradu??o culin¨¢ria e ensino: um exemplo de metodologia de

avalia??o utilizando etiquetagem e o WordSmith Tools

Elisa Duarte Teixeira*

RESUMO: Apesar do pouco prest¨ªgio da Culin¨¢ria como ¨¢rea t¨¦cnica de tradu??o, alguns

autores t¨ºm se dedicado a estudar as especificidades envolvidas na tradu??o de receitas e as

dificuldades que essa tarefa suscita. No presente trabalho, inicialmente um cap¨ªtulo de nossa

disserta??o de mestrado, apresentamos um exemplo de metodologia de avalia??o de tradu??o.

Aprendizes de tradu??o foram instados a traduzir uma receita culin¨¢ria e comentar certos

aspectos envolvidos na realiza??o dessa tarefa. O material resultante foi etiquetado e analisado

com o aux¨ªlio do programa WordSmith Tools. ? parte a car¨ºncia de materiais de consulta

constatada, observamos que os aprendizes tiveram dificuldade em observar caracter¨ªsticas de

g¨ºnero e tipologia textuais que, em ¨²ltima inst?ncia, deveriam nortear toda a sua produ??o

textual na l¨ªngua de chegada.

PALAVRAS-CHAVE: tradu??o t¨¦cnica, receitas culin¨¢rias, avalia??o de tradu??o, ensino de

tradu??o, terminologia

ABSTRACT: Despite the low prestige of the Culinary Arts as a technical area of translation,

some authors have been studying the specificities involved in the translation of cooking recipes

and the challenges posed by this task. In this paper, originally a chapter of our Master's thesis,

we present a methodology for evaluating translations. Translation trainees were asked to

translate a recipe and comment on some aspects involved in this task. The resulting material was

tagged and analyzed using WordSmith Tools. Apart from the lack of reference material verified

for the Portuguese language, we observed that the students had difficulty in observing register

and text typology characteristics that should ultimately guide their entire textual production in

the target language.

KEYWORDS: technical translation, cooking recipes, translation evaluation, translators

training, terminology

1. Introdu??o

A tradu??o de receitas culin¨¢rias parece f¨¢cil, mas n?o ¨¦. ? uma tarefa que

envolve especificidades t¨¦cnicas que apresentam dificuldades para o ato tradut¨®rio e que

s?o, muitas vezes, menosprezadas pelos editores, tradutores e pelo p¨²blico em geral

(Teixeira 2008b; 2004). Essas dificuldades s?o agravadas pela car¨ºncia de gloss¨¢rios

t¨¦cnicos da ¨¢rea, especialmente na variante brasileira, e pela presen?a cada vez maior de

obras em portugu¨ºs europeu no mercado editorial brasileiro. Tais publica??es, ao serem

tomadas como refer¨ºncia, acabam por gerar tradu??es n?o naturais na nossa variante

pois, conforme demonstramos anteriormente (Tagnin e Teixeira, 2004a, 2004b), o

portugu¨ºs europeu e o brasileiro n?o s?o intercambi¨¢veis, em se tratando de receitas.

*

Doutora em L¨ªngua Inglesa pelo Departamento de Letras Modernas da Universidade de S?o Paulo

(2008) e tradutora freelance.

Apesar do pouco prest¨ªgio que a Culin¨¢ria tem enquanto ¨¢rea t¨¦cnica de tradu??o

junto ¨¤ comunidade acad¨ºmica, encontramos na literatura pelo menos seis autores que

se dedicaram ¨¤ tarefa de estudar o tipo/g¨ºnero textual ¡°receita¡± e suas caracter¨ªsticas

com rela??o a outros textos do ponto de vista da tradu??o: Norrick (1983), Van Den

Broeck (1986), Massam e Roberge (1989), Nord (1997) e Colina (1997).

Com base num experimento de tradu??o de uma receita do espanhol para o

ingl¨ºs, aplicado junto a estudantes de tradu??o americanos, em sua maioria alunos do

terceiro e quarto anos de Espanhol, Colina (op. cit.) observa que a maioria dos

tradutores inexperientes n?o tem qualquer conhecimento das conven??es que delimitam

os tipos/g¨ºneros textuais, ou, na melhor das hip¨®teses, n?o t¨ºm consci¨ºncia de conhec¨ºlas at¨¦ que sejam mencionadas em sala de aula.

Assim, as tradu??es para o ingl¨ºs feitas pelos alunos apresentaram caracter¨ªsticas

textuais que revelam tanto a inadequa??o ao tipo/g¨ºnero em quest?o quanto uma

¡°contamina??o¡± pelas caracter¨ªsticas textuais do original em espanhol ¨C verificou-se a

presen?a de preposi??es na lista de ingredientes, o uso excessivo de artigos definidos e

indefinidos, um grande n¨²mero de ora??es coordenadas e a presen?a excessiva de

an¨¢foras. Essas caracter¨ªsticas, conforme apontado por Colina e constatado tamb¨¦m por

Norrik (op. cit.), n?o s?o patentes nas receitas de l¨ªngua inglesa, mas sim nas de l¨ªngua

espanhola. A autora conclui que as impropriedades encontradas nas tradu??es dos

aprendizes devem-se muito mais ¨¤ falta de compet¨ºncia tradut¨®ria dos mesmos do que a

uma n?o-familiaridade com a l¨ªngua; ou seja, a compet¨ºncia tradut¨®ria n?o se confunde

com a compet¨ºncia ling¨¹¨ªstica.

Van den Broek (op. cit.), por outro lado, analisa tradu??es para o alem?o de

receitas originalmente escritas em ingl¨ºs e franc¨ºs, realizadas por tradutores

profissionais, e observa que esses fazem ajustes, seja no n¨ªvel sint¨¢tico, seja no n¨ªvel

macro-textual, que demonstram uma preocupa??o com as normas textuais da l¨ªngua de

chegada. O autor observa tamb¨¦m que algumas receitas tradicionais francesas t¨ºm sido

reescritas para atender ao p¨²blico atual, caso em que o requinte estil¨ªstico ¨¦ preterido em

favor de uma linguagem mais simples e direta, que mimetiza a modernidade.

Com o intuito de verificar aspectos semelhantes, no contexto brasileiro, aos

observados por esses autores, realizamos dois estudos em nosso mestrado (Teixeira,

2004). O primeiro faz uma an¨¢lise da tradu??o das receitas de um livro de dieta e

comportamento feita por um tradutor profissional, para verificar suas escolhas

tradut¨®rias, e apresenta algumas solu??es poss¨ªveis para os problemas de n?o

equival¨ºncia entre as l¨ªnguas encontrados (cf. Teixeira, 2009). O segundo, ponto de

partida para o presente artigo, consiste num experimento de tradu??o de uma receita

aplicado a 28 tradutores aprendizes, aproveitando algumas sugest?es de Colina. Nele,

buscamos identificar os aspectos de maior dificuldade para os alunos brasileiros que

traduzem do ingl¨ºs e propor um sistema de avalia??o de seu desempenho. No presente

trabalho, ser¨¢ dada aten??o especial ¨¤ metodologia utilizada para a avalia??o das

tradu??es.

2. Metodologia

A seguir, descrevemos os crit¨¦rios empregados na elabora??o e aplica??o do

experimento junto aos tradutores aprendizes.

2.1 Informantes

Os 28 informantes eram alunos da disciplina de Tradu??o T¨¦cnica do curso de

Especializa??o de Longa Dura??o em Tradu??o (Ingl¨ºs) oferecido pelo Departamento

de Letras Modernas da Universidade de S?o Paulo. O experimento foi aplicado no in¨ªcio

do 1o. semestre de 2003. Maiores detalhes ser?o dados nos resultados da pesquisa.

2.2 Atividade proposta

A atividade apresentada aos alunos consistia em traduzir uma receita e responder

a um question¨¢rio. Foi proposta aos alunos a seguinte situa??o hipot¨¦tica: uma editora,

expandindo seu quadro de colaboradores, envia-lhes um teste de tradu??o como parte do

processo seletivo para contrata??o. O prazo dado aos alunos para a execu??o da tarefa

foi de uma semana. As respostas deveriam ser entregues via e-mail. N?o foi indicada

nenhuma bibliografia; eles poderiam fazer uso do material de consulta que quisessem:

impresso, eletr?nico, consulta a especialistas, etc.

Asseguramos aos alunos que seus trabalhos n?o seriam identificados

nominalmente e nem lhes seria atribu¨ªda nenhuma nota ou conceito ao trabalho. Sua

participa??o foi facultativa ¨C cerca de 50% dos alunos participaram ¨C e cada um recebeu

em retorno nossa proposta de tradu??o para a mesma receita.

2.2.1 Receita

Propusemos aos alunos a tradu??o da receita Vegetable Korma2 (ANEXO I).

Apesar de a publica??o ser americana, a receita foi originalmente escrita e publicada em

ingl¨ºs brit?nico ¨C o que pode ser atestado, por exemplo, pela presen?a do ingrediente

¡°aubergine¡± (¡°berinjela¡±), em vez de seu correspondente americano ¡°eggplant¡±.

2.2.2 Question¨¢rio

Solicitamos aos alunos que respondessem ao seguinte question¨¢rio, modificado de

Colina (1997), que deveria ser anexado ¨¤s suas tradu??es:

1) Semestre do curso:

2) Idade:

3) Sexo:

4) Experi¨ºncia em tradu??o de receitas (nenhuma, pouca, muita; profissional,

amador(a)):

5) Interesse pela ¨¢rea (gosta de cozinhar; compra livros de culin¨¢ria

regularmente; costuma ler receitas em jornais, revistas, Internet; troca

receitas com amigos; envia receitas para sites?).

6) Na primeira leitura que fez da receita, quais foram as palavras, tipos de

ingredientes / processos ou constru??es sint¨¢ticas do texto que apresentaram

maior dificuldade ou causaram maior estranhamento? Cite e comente cada

um desses itens / dificuldades.

7) Quais materiais de consulta voc¨º utilizou para traduzir? Cite todos e comente

como e o quanto cada um ajudou (ou n?o) no trabalho.

8) Quanto tempo (horas), aproximadamente, voc¨º levou para traduzir essa

receita? Foi suficiente, ou voc¨º ainda poderia melhor¨¢-la, se tivesse mais

tempo dispon¨ªvel?

9) Ao receber esta proposta de trabalho (tradu??o de uma receita) voc¨º,

provavelmente, preconcebeu uma id¨¦ia de como seria realiz¨¢-la (em termos

de dificuldade). Que id¨¦ia foi essa? Ela se confirmou ao longo da execu??o,

ou n?o?

2

Clevely, A.; K. Richmond; S. Morris and L. Mackley. Herbs and Spices. A Cook¡¯s Bible. Lorenz Books:

New York, 2000 (p. 434).

10) Na sua opini?o, que tipo de material seria importante para melhorar / facilitar

o trabalho dos tradutores dessa ¨¢rea de Culin¨¢ria? Por qu¨º?

2.3 Prepara??o do material recebido

Decidimos de antem?o usar a ferramenta de an¨¢lise ling¨¹¨ªstica Wordsmith

3

Tools , vers?o (Scott, 1996) para a an¨¢lise do material recebido. Para tal, solicitamos

aos alunos que enviassem seus arquivos, contendo a tradu??o e o question¨¢rio, em um

¨²nico documento, no formato ¡®.txt¡¯ (do tipo texto). Com os trabalhos em m?os,

procedemos ¨¤ coloca??o de um cabe?alho4 em cada um deles, onde seriam transcritas as

informa??es fornecidas no question¨¢rio. Em seguida, localizamos alguns pontos no

texto original que julgamos de dif¨ªcil tradu??o e marcamos os trechos correspondentes

nas tradu??es dos alunos, fazendo uso de etiquetas5. A seguir, explicamos

detalhadamente cada um desses procedimentos.

2.3.1 Cabe?alho

No in¨ªcio de cada tradu??o foi inserido um cabe?alho com os seguintes campos

(textos explicativos em it¨¢lico), usados para abrigar, entre outras informa??es, as

respostas dos alunos ao question¨¢rio:

nome do arquivo, ex.: trdr_01

translation - IOB into POB

recipe translation/version exercises

l¨ªngua fonte. No caso desta pesquisa, Ingl¨ºs Original

Brit?nico = IOB

nome da receita: Vegetable Korma

3

Para mais detalhes de como usar o programa em pesquisas ling¨¹¨ªsticas, vide Berber Sardinha (2004) e

Teixeira (2007; 2003b).

4

O cabe?alho ¨¦ uma maneira normalizada de documentar textos eletr?nicos. Ele ¨¦ anteposto a cada texto

individual do corpus e nele s?o armazenadas informa??es sobre as caracter¨ªsticas do texto, a fonte

consultada (refer¨ºncias bibliogr¨¢ficas, data e local da coleta, etc.) e quaisquer outras informa??es que

possam ser de interesse dos pesquisadores que ir?o usar o referido corpus.

5

C¨®digos acrescentados ao texto eletr?nico que permitem a consulta e manipula??o futura dos dados por

eles delimitados de forma autom¨¢tica. Para mais informa??es de como usar a etiquetagem em pesquisas

com corpora, vide Teixeira (2007).

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