“Seguindo em 40 mulas carregadas pª S. Felix, vender o ...

¡°Seguindo em 40 mulas carregadas p? S. Felix, vender o carregamento e

carregar novamente a tropa¡±: A atividade tropeira dos Faria Fraga (18831885)

SILVA, Laiane Fraga da

No final do s¨¦c. XIX, quando os animais de montaria ainda eram os principais meios de

locomo??o pelos caminhos sertanejos1, a manuten??o de tropas muares configurou-se como

uma importante atividade econ?mica exercida pela fam¨ªlia Faria Fraga2. Nesse contexto, a

¡°produ??o agr¨ªcola servia tanto ao consumo como ¨¤ venda e, juntamente com a cria??o de

gado sustentou a economia regional¡± (PIRES, 2009, p.147). A venda da produ??o s¨® era

poss¨ªvel, contudo, por causa de tropas como as dos Faria Fraga, determinantes para o

escoamento da produ??o alto sertaneja. Assim, em seu di¨¢rio pessoal, Joao Gon?alves Fraga,

registrou:

Em [1883] comprei um tropa em sociedade com meu cunhado J. C. Xavier,

compramos carregamentos de [sic], seguindo em 40 mulas carregadas p? S.

Felix, vender o carregamento e carregar novamente a tropa, n?o por [sic]

conta, mas para ganhar frete3

Nas anota??es do Sr. Jo?o Fraga, evidencia-se o qu?o din?mica foi essa atividade

econ?mica, ¡°40 mulas carregadas¡±, para ¡°vender o carregamento e carregar novamente¡±.

Segundo Licurgo Santos Filho, que escreveu sobre a Fazenda Brejo do Campo S¨ºco, no alto

sert?o da Bahia, entre os s¨¦c. XVIII e XIX:

No sert?o nordestino, cada animal carregava uma carga de 6 arrobas, em

dois ¡°costais¡±, um de cada lado, cada um pesando tr¨ºs arrobas. Noutras

regi?es, como em Minas Gerais, a carga era maior. Compreende-se. A

travessia da caatinga exigia maior esfor?o dos animais, da¨ª ser menor a carga

(SANTOS FILHO, 1956, p.255)

Tomando como base as informa??es desse autor, ¨¦ poss¨ªvel presumir que as tropas dos

Faria Fraga transitavam com um carregamento de aproximadamente 240 arrobas, ou seja,

3.600kg. Nas idas e vindas objetiva-se ¡°ganhar frete¡±, o que implica sobre os lucros auferidos

pela fam¨ªlia.

Os di¨¢rios pessoais, associados ¨¤s cadernetas de anota??es de credores e devedores

dessa fam¨ªlia possibilitaram a compreens?o dos arranjos comerciais e das redes de

sociabilidade tecidas entre os sert?es e o Rec?ncavo baiano. Nesse sentido, vale ressaltar que:

A vila de Nossa Senhora do Ros¨¢rio do Porto de Cachoeira, ¨²ltimo ponto

naveg¨¢vel do Rio Paragua?u, vai ser o maior entreposto do interior. Era

ponto importante, pois ligava a produ??o do interior que n?o tinha rios

naveg¨¢veis a capital pelo vapor que ia do Rec?ncavo a Cachoeira at¨¦ chegar

na baia de Todos os Santos. (PAES, 2001, p. 42)

Chegando em S?o Felix/ Cachoeira, ¡°maior entreposto do interior¡±, a produ??o

sertaneja seguia para Salvador, cidade portu¨¢ria respons¨¢vel pelo escoamento dessa produ??o

no contexto do s¨¦culo XIX. Produtos diversos sa¨ªam do alto sert?o baiano no lombo dos

animais em dire??o a Capital da Prov¨ªncia, passando pelo Rec?ncavo. Algumas

particularidades dessa atividade se evidenciam no di¨¢rio produzido por Jo?o Fraga:

Logo ap¨®s m? chegada tratei da luta pela vida- neg¨®cios, [sic], compras.

Como [sic]: boiadas, tropas etc. segui logo p? S. Felix com 40 mulas arriadas

e carregadas de algod?o e [sic] voltando com grande carregamento de

fazendas molhados e ferragens para a Villa da Lapa do Bom Jesus

margem do Rio S. Frco distante do porto 120 legoas. Viagem essa

dispendiosa e morrera devido a falta de pastagem e aguadas. N?o fui feliz

nada [sic] dispezas4

Este trecho reafirma o que os relatos de viajantes e estudos voltados para o alto sert?o

baiano j¨¢ t¨ºm indicado: que a produ??o algodoeira dessa regi?o foi muito expressiva. Segundo

Paulo Santos (2013), ¡°a Bahia se tornaria, no final do s¨¦culo XVIII e in¨ªcio do s¨¦culo XIX,

um grande exportador de algod?o. E a maior parte do algod?o exportado por Salvador foi

produzido no alto sert?o¡± (p.153/154).

Como se v¨º, os Faria Fraga estavam envolvidos nesse com¨¦rcio algodoeiro, mas, n?o

era s¨® isso. O Sr. Jo?o de Faria tamb¨¦m falou das rela??es comerciais mantidas com a ¡°Villa

da Lapa do Bom Jesus margem do Rio S. Frco¡± (atualmente Bom Jesus da Lapa ¨CBA), para

onde se destinava o carregamento de fazendas, molhados e ferragens adquiridos no

Rec?ncavo Baiano. Eram viagens marcadas por intemp¨¦ries, como registrou Jo?o Fraga:

¡°contractei o carregamento p? a Lapa do Bom Jesus, que dista do Porto de S. Felix, 130

leguas, ¨¤ 30[sic] por [sic] n?o fui feliz, a secca a falta de pastagem e agua, a tropa

emagreceu, muito morrendo algumas mulas [sic]¡±5.

Apesar dos percal?os, esse com¨¦rcio na Vila da Lapa do Bom Jesus j¨¢ era

consolidado, pois tamb¨¦m foi observado no trabalho de Napoliana Santana (2012) que, ao

descortinar as rela??es familiares na microeconomia escrava no sert?o do S?o Francisco (Vila

do Urubu 1840-1888), percebeu, a partir do invent¨¢rio do Sr. Porf¨ªrio, ¡°as viagens que esse

comerciante realizava em companhia de seus escravos, pelos caminhos do sert?o, em dire??o

aos centros comerciais da Bahia, para adquirir as mercadorias e, talvez, revend¨º-las nas vilas e

cidades da regi?o.¡± (SANTANA, 2012, p.130).

Atrav¨¦s das anota??es de d¨ªvidas/ cr¨¦ditos, alugu¨¦is de pastos, pontos de pouso,

compras de alimentos, contrata??o de camaradas, etc. presentes nas cadernetas da fam¨ªlia

Faria Fraga, ¨¦ poss¨ªvel reconstituir os percursos trilhados pelas tropas, como foi observado

nos registros de despesas com as viagens de tropeiros entre 1883- 1885.

Tabela 1: Despesas feitas com viagens de tropeiros entre 1883- 1885

(Caetit¨¦/Rec?ncavo)6

Produtos e lugares

Pasto na Cachoeira

Valores

3$000

Pasto na Carrapato

Pasto na Lagoa Real

Pasto Caza de Telha

Pasto Tanque da Pedra

Far? no Bom Js.

Pasto na Barra do Gavi?o

Pasto # nos troncos

Pasto na passagem de Sta Anna

Pasto no Caldeir?o

100 cravos em Marac¨¢s

Milho na Serra do Gado

5 libras sal em S. Felix

Pasto no jenipapo

5 [sic] arroz no Curralo

Pasto de 4 animais na M? preta

5/4as milho no R? Secco a 1000

3/4 as milho a [sic] nas Trombas

Cobres para torrar caf¨¦ no Ribeir?o

1 [sic] assucar na Formoza

Toucinho no Morro

2 [sic] milho no Caldeir?oz?

Pasto de 2 animais no Alto

3 [sic] milho P. S? Anna

Riacho de baixo pasto

Retiro pasto

Lapa pasto

Riacho de baixo (na vinda) pasto

2$750

1$560

1$000

1$000

$040

2$040

1$000

2$000

1$600

1$200

2$000

$400

2$400

1$400

$280

5$000

3$300

$140

$320

$320

6$000

$160

15$000

1$000

1$500

$960

1$000

Reconstituir com detalhes os caminhos que, atualmente, correspondem ¨¤queles

trilhados pelas tropas que sa¨ªam do sert?o at¨¦ o Reconc?vo Baiano ¨¦ tarefa das mais dif¨ªceis.

As fazendas foram repartidas, muitas nomenclaturas foram alteradas e, al¨¦m disso, alguns

pontos de pouso como a ¡°M? Preta¡± eram apelidados, o que n?o equivale aos registros oficiais.

Todavia, a partir das contribui??es da Superintend¨ºncia de Estudos Econ?micos e Sociais da

Bahia (2001) e de NEVES & MIGUEL (2007), foi poss¨ªvel delimitar o caminho feito pela

tropa dos Faria Fraga, representado no Mapa 01. Apesar da singularidade desse registro,

presume-se que esse era o mesmo trajeto feito por outras tropas que seguiam sert?o a fora...

Saindo de Caetit¨¦, passavam por Lagoa Real, Bom Jesus dos Meiras (atual Brumado), Barra

(Barra do Gavi?o, no ponto de encontro do Rio Gavi?o), Caldeir?o, Marac¨¢s, Morro,

Ribeir?o, Jenipapo (fazenda localizada no municipio de Castro Alves) e, por fim, S?o Felix,

no Rec?ncavo da Bahia:

Figura 02: Mapa dos trajetos das tropas dos Faria Fraga (1883-1885)

Rio Par

agua?u

S?O F?LIX

JENIPAPO

RIBEIR?O

Rio Paragua?u

-13¡ãS

S?o

Fran

cisc

o

Rio de Contas

MORRO

CALDEIR?O

MARAC?S

LAGOA REAL

-14¡ãS

BARRA

Rio

de C

onta

s

CAETIT?

Rio

Ga

vi?

o

Oceano Atl?ntic

o

BOM JESUS DOS MEIRAS

Paradas

Caminho dos tropeiros

(1883-1885)

-15¡ãS

Rio Pardo

Rios

Organiza??o: Laiane Fraga da Silva

Elabora??o: Jun¨ªvio S. Pimentel. Junho/2014.

Fonte adaptada: Cadernetas pessoais da Fam¨ªlia Faria Fraga 1883-1885.

-43¡ãW

-42¡ãW

0km

-41¡ãW

-40¡ãW

60km

-39¡ãW

Entre partidas e retornos, observam-se anota??es de despesas com ¡°rancho 16 dias

8$000¡±7 em S?o Felix, o que faz presumir o quanto essas viagens eram longas e dispendiosas,

sujeitas a acontecimentos e compromissos diversos. Os dias de hospedagem no Rec?ncavo

eram indispens¨¢veis para se obter as encomendas necess¨¢rias, executar os neg¨®cios sem

maiores preju¨ªzos e comprar os produtos encomendados, como os do ¡°Sr. Hilari?o do Riacho

de St? Anna 3$ p? comprar uma folhinha do Rio e o restante em charutos bons¡±8.

Tamb¨¦m se observam os gastos com ¡°com lavagem de roupa 3$500¡±9, em S?o Felix,

atividade certamente realizada pelas lavadeiras ¨¤s margens do Rio Paragua?u como alternativa

de ganho propiciada pelo dinamismo da cidade. Essa pequena anota??o traduz a amplitude

das rela??es sociais e dos neg¨®cios existentes a partir das tropas sertanejas.

Al¨¦m dos gastos com as lavadeiras, registra-se o ¡°Dinh? a 1 tocador 2$320¡±10,

evid¨ºncia que ratifica os momentos de sociabilidades mantidos ao longo do caminho. Assim,

por mais laborioso que fosse o percurso da tropa, haviam tamb¨¦m os momentos de festividade

e descontra??o propiciados/mantidos pelos tropeiros sertanejos.

Ao passo que as tropas dos Faria Fraga dinamizavam as experi¨ºncias sociais dos

percursos por onde passavam, em outras regi?es, suas fazendas no alto sert?o baiano tamb¨¦m

se mantinham no caminho de outras tropas, como aquelas advindas da Vila de Monte Alto,

conforme ressalta o memorialista D¨¢rio Cotrim (2001, p.60 ¨C grifos meus):

[...] desta vez passando pela veredinha, seguindo o caminho da fazenda

Volta, os tropeiros chegavam at¨¦ a Vila de Nossa Senhora do Ros¨¢rio do

Gentil. Da¨ª outras duas pequenas veredas: uma que iniciava pelo morro do

Ba¨², do Suru¨¢ e penetrava pelo Sitio do Riachuelo, do doutor Jo?o Jos¨¦ de

Faria [...].

Informa??es como estas evidenciam prov¨¢veis transa??es comerciais mantidas entre

distintos negociantes. Se as tropas advindas da Vila de Monte Alto, qui?¨¢ de percursos mais

long¨ªnquos, passavam nas propriedades da fam¨ªlia Faria Fraga, consequentemente

facilitavam/impulsionavam o escoamento de produtos comercializados por esses sujeitos. Ao

mesmo tempo, a passagem das tropas tamb¨¦m significava uma possibilidade de ganho

advindo do pasto e da ¨¢gua fornecida aos tropeiros.

No contexto do s¨¦culo XIX, marcado por grandes disparidades socioecon?micas,

sujeitos como os tropeiros gozavam de certo ¡°status social¡±, uma vez que o trabalho com as

tropas permitia a amplia??o das redes de sociabilidades, a tessitura de la?os de amizade,

sempre reanimados a cada viagem, o conhecimento pr¨¦vio das novidades da capital, ou

mesmo das informa??es mais atualizadas. Em geral: ¡°o tropeiro iniciava-se na profiss?o desde

muito cedo, por volta dos 10 anos, primeiro acompanhando o pai em suas andan?as quando

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