O piloto-aprendiz e o engenheiro-mestre - CORE

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk

brought to you by

CORE

provided by Cadernos Espinosanos (E-Journal)

O piloto-aprendiz e

o engenheiro-mestre:

O ensino esportivo

do automobilismo em

Dias de trov?o e Carros

Rafael Duarte Oliveira Venancio

Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunica??es e Artes da

Universidade de S?o Paulo (ECA-USP). Professor Programa de P¨®s-Gradua??o em Tecnologias,

Comunica??o e Educa??o da Universidade Federal de Uberl?ndia (UFU).

E-mail: rdovenancio@

Resumo: A proposta da resenha ¨¦ de

apresentar dois filmes que relatam o ensino

do automobilismo atrav¨¦s da rela??o entre

um mestre e um aprendiz, sendo um filme

blockbuster (Dias de trov?o, 1990, de Tony

Scott) e outro uma anima??o focada no p¨²blico infantil (Carros, 2006, de John Lasseter).

A ideia central ¨¦ mostrar como a aprendizagem do esporte, no caso o automobilismo,

¨¦ midiatizada pelo cinema atrav¨¦s da ideia

de uma educa??o calcada na figura de um

aprendiz e de um mestre, construindo um

imagin¨¢rio do esporte pr¨®ximo daqueles

postos pelas narrativas maravilhosas.

Abstract: The purpose of the review is to

present two movies about motoring school

through the relationship between a master

and an apprentice, one a blockbuster film

(Days of Thunder, 1990, Tony Scott) and

the other an animation focused in children's

audience (Cars, 2006, John Lasseter). The

main idea is to show how sports learning,

in this case the motor racing, is mediated

by cinema through the idea of an education

grounded in the figure of an apprentice

and a master, building a sports imagery

close to those constructed by the wonderful narratives.

Palavras-chave: cinema; desenho animado;

automobilismo; educa??o esportiva.

Keywords: cinema; animation; motoring;

sports education.

1. INTRODU??O

O automobilismo ¨¦ um dos esportes mais midiatizados na cena contempor?nea comunicacional. Seja pelas transmiss?es jornal¨ªsticas, pelo cinema ou pelo

universo da publicidade, o esporte de competir em corridas de carros conduz um

ide¨¢rio demarcado de aud¨¢cia, hero¨ªsmo, competi??o e tecnologia. Dentro desse

cen¨¢rio, ¨¦ not¨®rio os filmes que visam demonstrar a inicia??o no automobilismo.

159

comunica??o

& educa??o

? Ano

XX

? n¨²mero

2

? jul/dez 2015

Atualmente, a entrada no esporte se d¨¢ pela obten??o de uma carteira

especial, conhecida como licen?a. Ela ¨¦ obtida em um processo pedag¨®gico,

em escolas de pilotagem, com aulas te¨®ricas e pr¨¢ticas, passando pela legisla??o automobil¨ªstica, fundamenta??o te¨®rica mec?nica e t¨¦cnicas de pilotagem.

Esse modelo encontra seus pioneiros em pilotos como Jim Russell (ingl¨ºs

que educou Emerson Fittipaldi nas corridas europeias de carros f¨®rmula), Skip

Barber, Paul Fr¨¨re, Piero Taruffi e outros que constru¨ªram escolas e escreveram

livros did¨¢ticos sobre o assunto. No entanto, essa realidade n?o ¨¦ demonstrada

nos filmes sobre a inicia??o automobil¨ªstica. O que vemos ¨¦ mais uma rela??o

narrativizada de ¡°aprendiz e mestre¡± em plena atua??o do esporte, sem um

momento did¨¢tico anterior.

Com isso, a presente resenha apresenta dois filmes que relatam o ensino

do automobilismo por meio desse paradigma f¨ªlmico, sendo um filme blockbuster

(Dias de trov?o, 1990, de Tony Scott) e outro uma anima??o focada no p¨²blico

infantil (Carros, 2006, de John Lasseter), ambos focados na mesma categoria

do automobilismo (stock car, conhecido como turismo no Brasil) e no mesmo

ambiente (a categoria m¨¢xima de stock car estadunidense, a Nascar).

A ideia central ¨¦ mostrar como a aprendizagem do esporte, no caso o automobilismo, ¨¦ midiatizada pelo cinema pela ideia de uma educa??o calcada na

figura de um aprendiz e de um mestre, construindo um imagin¨¢rio do esporte

pr¨®ximo daqueles postos pelas narrativas maravilhosas. Assim, o automobilismo

vira mais uma das est¨®rias que envolvem o cotidiano do esporte.

2. A

 S NARRATIVAS MIDI?TICAS DE DIAS DE TROV?O

E CARROS: SIMILARIDADES E ATUALIZA??ES NO

AUTOMOBILISMO STOCK CAR

Criada em 1948, a Nascar ¨¦ a principal categoria de corrida de stock cars

nos Estados Unidos. Sua principal marca s?o circuitos ovais onde pilotos competem provas de longa dist?ncia. Normalmente, h¨¢ uma categoria principal ¡ª

que, pela maior parte de sua exist¨ºncia recebeu o nome de Winston Cup ¡ª e

categorias de forma??o.

Tanto Dias de trov?o como Carros utilizam a Nascar de maneira ficcional,

por¨¦m vinculada com elementos da realidade automobil¨ªstica. Tal como veremos

a seguir, ambos deixam claro ao p¨²blico, sua liga??o com a categoria bem como

a representa??o imagin¨¢ria do processo de inicia??o e de desenvolvimento de

um piloto-aprendiz e de um engenheiro-mestre.

? nessa rela??o que, inclusive, h¨¢ maior influ¨ºncia da demarca??o de um

p¨²blico. Um, voltado ao p¨²blico mais ¡°adulto jovem¡± do universo blockbuster,

e outro para um p¨²blico infantil, inclusive em sua forma de realiza??o: a do

desenho animado. Com isso, o ¡°adulto jovem¡± Dias de Trov?o e o infantil Carros

falam sobre o mesmo assunto, na mesma categoria de competi??o esportiva,

mas modalizando o imagin¨¢rio.

160

O piloto-aprendiz e o engenheiro-mestre ? Rafael Duarte Oliveira Venancio

2.1. Dias de Trov?o

Lan?ado em 1990 e com 108 minutos, Dias de trov?o segue Cole Trickle

(Tom Cruise) em sua inicia??o no mundo da Nascar. Com pilotos, engenheiros,

donos de equipe, jornalistas e carros ficcionais (baseados em figuras not¨®rias),

mas com todas men??es reais ao calend¨¢rio de pistas Nascar, Dias de trov?o

quer representar uma poss¨ªvel temporada da categoria no final dos anos 1980.

Para Trickle conseguir seu objetivo, ter sucesso na Nascar ganhar a sua

principal prova, a Daytona 500, o dono da equipe, Tim Daland (Randy Quaid),

dono de uma concession¨¢ria Chevrolet, contrata um engenheiro aposentado,

Harry Hogge (Robert Duvall), para chefiar a equipe de boxes de Trickle.

Nas primeiras provas da Nascar, Trickle comete erros b¨¢sicos ao n?o se

adaptar aos carros largos de stock car, n?o se acostumar com a comunica??o

de equipe, n?o lidar com o jeito de pilotar usado na categoria, bem como o

manejo do carro. Assim, suas primeiras provas terminam com abandonos por

batidas ou por equipamentos, especialmente o motor, danificados.

Ao confrontar Trickle, Hogge descobre que ele n?o tem no??es b¨¢sicas de

mec?nica ou da terminologia do esporte. Hogge inicia um treinamento com

exemplos de sua experi¨ºncia, treinos e exerc¨ªcios em plena prova. Durante o

treinamento, Trickle consegue ganhar for?a no campeonato a ponto de incomodar na pista o campe?o do ano passado, Rowdy Burns (Michael Rooker).

Em uma corrida apertada, ambos se envolvem em um acidente de m¨²ltiplos

carros (The Big One, na terminologia Nascar) e ambos precisam de cuidados

m¨¦dicos. No processo de tratamento, Trickle ¨¦ substitu¨ªdo por outro novato,

Russ Wheeler (Cary Elwes), que despreza os procedimentos de Hogge, mas

consegue bons resultados.

Trickle, apaixonado pela neurocirurgi? que o atendeu (Nicole Kidman),

retorna para as pistas e encontra em Wheeler seu principal inimigo. Burns,

agora amigo de Trickle, est¨¢ impedido de correr e deve a seus patrocinadores.

Trickle, comovido, resolve abandonar a sua equipe, desrespeitosa a ele e a

Hogge, e resolve correr com as cores de seu rival de outrora na Daytona 500

para pagar as d¨ªvidas do impossibilitado Burns.

Com dificuldades, mas com ajuda de um arrependido Daland, Trickle consegue vencer a Daytona 500 na ¨²ltima curva, ap¨®s estar em ¨²ltimo, usando apenas

as li??es de Hogge. Na festa da vit¨®ria, Trickle e Hogge apostam uma corrida,

em tom de galhofa, para ver quem ¨¦ o mais r¨¢pido, com os p¨¦s, dos dois.

2.2. Carros

Produzido pela Pixar em 2006, Carros ¨¦ um filme de anima??o de 116

minutos que acontece em uma vers?o ficcionalizada da Nascar. Nesse mundo,

onde os carros antropomorfizados pilotam por si mesmos, as refer¨ºncias ¨¤

essa realidade s?o feitas por trocadilhos, homenagens de design e, at¨¦ mesmo,

dubladores.

161

comunica??o

& educa??o

? Ano

XX

? n¨²mero

2

? jul/dez 2015

Rel?mpago McQueen (dublado por Owen Wilson) ¨¦ um novato que chegou

na corrida final da Copa Pist?o (Piston Cup, um trocadilho com uma das copas

mais tradicionais da Nascar, a Winston Cup) empatado com o atual campe?o,

Strip Weathers, o Rei (claramente um Plymouth Superbird usado pelo dublador, o multicampe?o da Nascar, Richard Petty, tamb¨¦m conhecido como Rei)

e Chick Hicks (dublado por Michael Keaton).

Ansioso para chegar antes de seus rivais na Calif¨®rnia, palco da ¨²ltima

corrida, Rel?mpago acaba se perdendo, no meio do caminho, ao cair do seu

transportador. Com esse acidente, destr¨®i a pista da pequena cidade de Radiator Springs. Condenado a consertar a pista, Rel?mpago fica longe da m¨ªdia e

irritado por apenas ter uma pista de terra para treinar. Al¨¦m disso, encontra

no juiz da cidade, o Dr. Doc Hudson (dublado por Paul Newman), uma fonte

de rep¨²dio ao seu status de competidor de automobilismo.

Os dias passam, e Rel?mpago conhece mais a cidade e seus moradores.

O astro da Copa Pist?o se comove com a decad¨ºncia causada pelo desuso da

Rota 66 perante a via expressa. Com isso, entra em contato com a hist¨®ria de

cada morador de Radiator Springs e come?a a ajud¨¢-los a revitalizar a cidade.

Por fim, a ¨²ltima hist¨®ria pessoal que ele conhece ¨¦ a do pr¨®prio Doc.

Ao observ¨¢-lo correr com maestria na pista de terra, ele descobre que Doc ¨¦

o tricampe?o da Copa Pist?o, o Fabuloso Hudson Hornet (um carro real que

venceu a Nascar tr¨ºs vezes: 1951 e 1953 com Herb Thomas pilotando e em

1952 com Tim Flock). Com a hist¨®ria de vida de Doc, Rel?mpago aprende

li??es de como pilotar com o jeito da antiga escola da Copa Pist?o e sobre

responsabilidade na pista.

A m¨ªdia descobre o paradeiro de Rel?mpago, gra?as a uma informa??o

dada por Doc, e ele ¨¦ levado para a Calif¨®rnia para competir na corrida final da Copa Pist?o. Visivelmente abalado pelo modo como saiu de Radiator

Springs, Rel?mpago n?o parecia preparado para correr, mas ao notar que seus

amigos da cidade seriam sua equipe de Box, chefiada pelo engenheiro Doc,

ele resolve tentar.

Ao notar a falta de esportividade de Chick Hicks e o acidente sofrido

pelo Rei, Rel?mpago desiste de ganhar a corrida e ajuda o campe?o. O t¨ªtulo

vai para Hicks, mas os olhares ficam sobre Rel?mpago, que resolve, com sua

notoriedade, ajudar a comunidade que o recebeu, transportando seu QG para

Radiator Springs, revitalizando a cidade.

3. IMAGIN?RIO DO ESPORTE: APRENDIZ E MESTRE

VINCULADOS COM AS FUN??ES NARRATOL?GICAS

Roger Ebert, em sua resenha para o Chicago Sun-Times, deixou claro que

o filme parecia seguir uma f¨®rmula tradicional, repetidas em filmes anteriores

de Tom Cruise, tal como Top Gun ¡ª Ases Indom¨¢veis (1986), A cor do dinheiro

(1986) e Cocktail (1988). Ela seria composta por nove elementos:

162

O piloto-aprendiz e o engenheiro-mestre ? Rafael Duarte Oliveira Venancio

1. A personagem de Tom Cruise, invariavelmente um jovem e inocente, mas

naturalmente talentoso que pode ser o melhor, se conseguir domar seu esp¨ªrito.

2. O Mentor, um homem mais velho, que se construiu sozinho e esteve na mesma situa??o antes. Ele sabe reconhecer talento quando o v¨º e tem f¨¦ no jovem

mesmo quando ele estraga tudo porque seu esp¨ªrito livre impediu o melhor dele.

3. A Mulher Superior, usualmente mais velha, mais alta e mais madura que a

personagem de Tom Cruise, que funciona enquanto mentora para seu esp¨ªrito,

enquanto o Mentor supervisiona seu Trabalho.

4. O Trabalho, que o jovem talentoso precisa dominar.

5. A Arena, na qual o jovem ¨¦ testado.

6. O Arcabou?o, constitu¨ªdo pelo conhecimento especializado que o filme sabe

tudo e que n¨®s precisamos aprender.

7. O Caminho, uma jornada para visitar os principais lugares onde o mestre do

trabalho testa um outro.

8. O Protoinimigo, o cara mau do come?o do filme, que ¨¦ um oponente para

o her¨®i praticar. Em um primeiro momento, a personagem de Tom Cruise e o

Protoinimigo n?o se gostam, mas, eventualmente, depois de um batismo de fogo,

eles aprendem a gostar um do outro.

9. O Inimigo Final, um cara mau de verdade que aparece no fim do filme para

dar ao her¨®i um teste de sua habilidade, de sua habilidade de aprender, de seu

amor, de seu trabalho e de seu conhecimento da Arena e do Arcabou?o1

Tal f¨®rmula estaria enraizada em um fen?meno cultural encabe?ado pela

narrativa cinematogr¨¢fica. Aqui vale a pena lembrar que, para correntes idealistas,

o conceito de cultura ¨¦ resumido ¡°como aquilo que est¨¢ por tr¨¢s das atitudes de

um povo, ou seja, uma estrutura inconsciente que modela os comportamentos,

pensamentos e posicionamentos das pessoas no mundo; como um modelo, uma

estrutura, um padr?o¡±2. Isso se bifurca em tr¨ºs principais correntes:

1. Cultura como sistema cognitivo, que estuda os modelos de comunica??o constru¨ªdos por membros de uma comunidade;

2. Cultura como sistemas estruturais, onde a cultura ¨¦ definida como ¡°um sistema

simb¨®lico que ¨¦ uma cria??o acumulativa da mente humana (Claude L¨¦vi-Strauss);

3. E cultura como sistemas simb¨®licos, ou seja, a cultura n?o ¨¦ considerada como

um complexo de comportamentos, ¨¦ uma teia de significados que o mesmo homem teceu, que precisa desesperadamente dos programas entendidos como ¡°um

conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instru??es (que os

1 EBERT, R. Days of Thunder.

Chicago Sun-Times. Chicago, 27 jul. 1990. Dispon¨ªvel

em: . Acesso em: 16

jun. 2015.

2 CUNHA, R. C. V. Os

conceitos de comunica??o e cultura em

Raymond Williams. Disserta??o de Mestrado.

Bras¨ªlia: UnB, 2010, p. 22.

163

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download