VENANCIO, Rafael Duarte Oliveira Speed Racer e a Semiótica do Movimento ...

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk

brought to you by CORE

provided by PhilPapers

semeiosis

semi?tica e transdisciplinaridade em revista

transdisciplinary journal of semiotics

Speed Racer e a semi?tica do movimento no desenho animado

Venancio, Rafael Duarte Oliveira. Professor da gradua??o em Tecnologia em Produ??o Audiovisual do Centro Universit?rio SENAC ? SP e Doutorando

em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunica??es e Artes da Universidade de S?o Paulo (ECA-USP) | rdovenancio@

resumo

O presente artigo busca analisar, no aspecto da imagem audiovisual e focando na quest?o do movimento, a s?rie televisiva de desenho animado Speed Racer (Mach Go Go Go, 1967-68). Utilizando a teoriza??o de Gilles Deleuze acerca da imagem-movimento e seus aspectos semi?ticos, o objetivo aqui ? ver como um desenho animado, utilizando a chamada anima??o limitada, consegue representar o movimento automobil?stico sem precisar mobilizar in?meros elementos de anima??o ou mesmo rotoscopiar imagens de corridas de carros. Por fim, o artigo traz algumas considera??es sobre como Speed Racer, utilizando sua abordagem semi?tica de movimento, agiu na linguagem do dispositivo do desenho animado, ou seja, nos campos de a??o social mimetizados por qualquer realiza??o audiovisual.

palavras-chave: desenho animado; automobilismo; imagem-movimento

abstract

This article aims to examine, with the aspect of the audiovisual image and focus on the question of movement, the television cartoon series Speed Racer (Mach Go Go Go, 1967-68). Based on Gilles Deleuze's theories on the movementimage and its semiotic aspects, the goal here is to see how a cartoon, using the so-called limited animation, can represent the automobilist movement without the need to mobilize many elements animated or even to rotoscope images of racing cars. Finally, this paper presents some considerations about how Speed Racer, using his semiotic approach to movement, acted in the language of the animated cartoon apparatus (i.e. the fields of social action mimicked by any audiovisual realization).

keywords: animated cartoon; auto racing; movement-image

setembro / 2011

A segunda metade dos anos 1960 ? um tempo de ?pice para o automobilismo enquanto esporte. A F?rmula 1, considerada a categoria m?xima, estava encerrando a sua segunda d?cada em pleno sucesso. Aquela competi??o de garagistas, pequenos donos de manufaturas automobil?sticas, iniciava a chamar aten??o de financiadores poderosos, o big business, cujo dom?nio no esporte come?aria em 1971, quando Bernie Ecclestone compra a Brabham do piloto tricampe?o e dono de escuderia Jack Brabham.

Na escalada de aten??o, outras categorias tamb?m iniciaram seu pleno desenvolvimento no mesmo per?odo: a corrida das 500 milhas de Indian?polis come?a a ter a presen?a massiva de pilotos n?o-americanos e a fazer parte do calend?rio da F1; em 1968, o campeonato norte-americano de carros f?rmula (USAC) teve o seu recorde de provas com 28 etapas, e o de carros turismo (NASCAR) come?ava o seu processo de expans?o e profissionaliza??o; j? as 24 Horas de Le Mans voltava a ser o grande evento de carros-esporte contando com a presen?a dos pilotos de F1 e fazendo fama de modelos lend?rios tal como o Ford GT40, tetracampe?o leg?timo da competi??o (1966-69).

Apesar de a hist?ria ser not?ria agora, isso tudo significou uma recupera??o surpreendente para o esporte, principalmente se lembrarmos que o automobilismo quase entrou no ostracismo ap?s o grave acidente nas 24 Horas de Le Mans em 1955, chegando a ser banido em muitas na??es.

N?o seria exagero dizer que o principal revitalizador do esporte nos anos 1960 ? at? por ter levado o big business ao mundo ocupado antes por alguns poucos fan?ticos por velocidade ? foi a televis?o, transformando as fa?anhas de pilotos e m?quinas de meras narrativas escritas em imagens v?vidas, tal como se o p?blico estivesse na arquibancada ou mesmo ao volante.

5 Mach Go Go Go ? um jogo de palavras em japon?s. A palavra Go significa tanto o n?mero 5 (montando o nome do carro, o Mach 5), tanto um sufixo para m?quinas (tal como San), tanto o nome original do piloto (Go Mifune, o Speed Racer na vers?o americana) como ? a palavra inglesa go (vamos, em tradu??o livre), bastante utilizada como incentivo no automobilismo. Al?m disso, Go Go Go ? uma das representa??es onomatop?icas para gritos japoneses de torcida. ? dos dois ?ltimos sentidos que surgem a inspira??o para a express?o contida na m?sica de abertura em ingl?s, a famosa Go Speed Racer Go!

Para se ter uma ideia, a primeira transmiss?o em cores de uma corrida de F?rmula 1 foi o Grande Pr?mio da Alemanha em 1967. Um ano antes, o cinema apresentava Grand Prix, filme de fic??o que foi gravado no decorrer das provas de F?rmula 1 e contava com pilotos famosos tais como Graham Hill e Phil Hill (que gravou a maioria das cenas on board).

Assim, o automobilismo entrou para o rol dos eventos midi?ticos. Com a ajuda do cinema e da televis?o, o esporte se misturou com a imagem de mocinhos e suas m?quinas de correr, tal como em James Bond (s?rie de cinema iniciada em 1962) e afastando a imagem de transgress?o envolvida na d?cada anterior, tal como em Rebel without a cause (1955) com James Dean.

Com a febre automobil?stica, as demais pr?ticas midi?ticas se mobilizaram para achar realiza??es de sucesso no campo. No caso do desenho animado, o mundo ocidental teve que recorrer ao oriental: a s?rie televisiva japonesa Mach Go Go Go1 ou Speed Racer (1967-68). Enquanto o original japon?s iniciou

2

em abril de 1967, a tradu??o norte-americana come?ou em setembro daquele mesmo ano, dando um ar de simultaneidade nos dois cantos do mundo.

Muito mais do que o primeiro desenho animado sobre automobilismo, Speed Racer, pelo seu tratamento do movimento, ? considerado um dos fundadores do desenho animado de a??o. Apenas ele e Jonny Quest (1964-65) eram os exemplares desse g?nero t?o comum no cinema, mas incomum em um mundo de seres m?ticos e super-her?is fant?sticos.

No entanto, uma narrativa sobre automobilismo n?o basta para sustentar um desenho animado sobre o assunto. A nossa persist?ncia da vis?o, ilusionada pelos 24 desenhos por segundo, precisa operar a fim de termos a impress?o de estarmos vendo corridas tais como aquelas do mundo do autoesporte.

Dessa forma, a quest?o do movimento automobil?stico (re)presentado em Speed Racer ? crucial para entender o sucesso e o grande apelo que ele motivou, incentivando um fandom que persiste at? os dias atuais. Atrav?s da an?lise das imagens de movimento, o presente artigo acredita ser poss?vel identificar o impacto sociomidi?tico, representado pelo conceito de dispositivo, que o desenho animado efetuou.

O escopo te?rico de an?lise audiovisual no qual o presente artigo se baseia ? aquele proporcionado por Gilles Deleuze, especialmente a no??o de imagem-movimento, que possui clara influ?ncia da semi?tica de C. S. Peirce, especialmente no que toca ?s categorias universais, ou seja, a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade.

Dessa forma, antes de prosseguir para a an?lise do corpus proposto de Speed Racer ? ou seja, a sua ?nica temporada de 52 cap?tulos ?, e a quest?o da representa??o do movimento automobil?stico, ser? detalhado um pouco mais do arcabou?o te?rico abarcado pela presente exposi??o.

secundidade e automobilismo: elementos semi?ticos da imagem-movimento

Seja a imagem telecinem?tica, seja a imagem proveniente do desenho animado, a representa??o do automobilismo sempre estar? mais colada ? imagem dos carros em velocidade do que algu?m nos contando acerca disso. Mas que imagem seria essa?

A? reside a necessidade de se adotar um arcabou?o te?rico de an?lise f?lmica que busque a primazia da imagem no audiovisual. Vemos, ent?o, que Gilles Deleuze acreditava que o cinema ? uma forma de pensamento, onde n?o h? pensamento conceitual, mas sim por imagens. "Da? a primeira grande tese de Deleuze ao elaborar uma classifica??o das imagens cinematogr?ficas: o cinema pensa com imagens-movimento e imagens-tempo, as primeiras caracterizando

3

o cinema cl?ssico, as segundas, o cinema moderno" (MACHADO, 2009: 247).

Deleuze se utiliza da classifica??o de Peirce para elaborar seus conceitos, retirados de uma reflex?o calcada nas tr?s teses de movimento de Henri Bergson, a quem Deleuze destina a paternidade tanto da imagem-movimento quanto da imagem-tempo. A escolha pela semi?tica para analisar o f?lmico ? clara para Deleuze (2005: 43): "A for?a de Peirce, quando inventou a semi?tica, esteve em conceber os signos partindo das imagens e de suas combina??es, e n?o em fun??o de determina??es j? lingu?sticas (...). Peirce parte da imagem, do fen?meno ou daquilo que aparece".

Dessa forma, a imagem-movimento ? que ? a que aqui interessa devido ao car?ter do objeto f?lmico da reflex?o, o automobilismo ? recebe caracter?sticas das categorias universais tra?adas por Peirce que s?o, tal como foi dito, a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade.

Comecemos pela Primeiridade, ou Categoria-Primeiro. Em suas Confer?ncias sobre pragmatismo, Peirce (1980: 25) a resume enquanto "a Ideia daquilo que ? independente de algo mais. Quer dizer, ? uma Qualidade de Sensa??o". Uma explica??o mais elaborada ? que a Primeiridade

corresponde a tudo aquilo que ? imediatamente positivo em si mesmo, sem nenhuma rela??o ou necessidade de representa??o. S?o as qualidades puras (enquanto elas pr?prias e n?o enquanto representadas na mente). A primeiridade pura est? presente em todas as coisas, pois ? a fonte primitiva, necessariamente incorporada, em tudo o que existe ou se distribui. Ela ? indefinida, fresca, original, espont?nea, livre e v?vida (ROMANINI, 2006: 81).

A Primeiridade da imagem-movimento, para Deleuze, ? a imagemafei??o. Uma imagem-afei??o ?, por exemplo, o grande plano de um rosto ou a cena de um precip?cio. Deleuze a explica bem com uma cena de A caixa de Pandora (1929), de G. W. Pabst:

H? Lulu, a l?mpada, a faca do p?o e Jack o Estripador: pessoas supostamente reais com caracteres individuados e pap?is sociais, objetos com as suas utilidades, conex?es reais entre esses objetos e essas pessoas, em suma, todo um estado de coisas atual. Mas h? tamb?m o brilho da luz na faca, o gume da faca sob a luz, o terror e a resigna??o de Jack, a meiguice de Lulu. Isso s?o puras qualidades ou potencialidades singulares, puros "poss?veis" de certo modo (DELEUZE, 2009: 159).

No entanto, o mundo da Primeiridade da imagem-movimento, que ? a imagem-afei??o, ? um mundo idealista que n?o combina com aquilo que o mundo automotor significa. Vejamos um exemplo do que seria a "linguagem"

4

do automobilismo.

Ao comentar a venda de um Bugatti Type 57SC Atlantic, de 1936, por 40 milh?es, Ferreira Gullar a explica atrav?s de uma poss?vel aura est?tica que envolveria o carro, tal como se fosse um quadro. Assim, tal como se contrariasse Walter Benjamin, afirma que "a aura que envolve esse ou aquele objeto ? seja um quadro ou um autom?vel ? depende de fatores muito diversos, que tanto pode ser a qualidade est?tica, sua condi??o de objeto raro ou extravagante, como a hist?ria ou lenda que o envolva" (GULLAR, 2010).

Longe de entrar na pol?mica filos?fica levantada por Gullar ? j? que essa particularidade pode ser explicada atrav?s da conceitua??o de uma simula??o aur?tica provocada pelo "fascismo da forma" (BENJAMIN, 1994: 194-6) ?, a constata??o acima mexe com um dos existenciais da necessidade de contar hist?rias acerca do mundo do automobilismo.

Bugattis, Ferraris, Mercedes e Talbot-Lagos s? se tornam signos de fama em si n?o s? porque h? os carros e pilotos lend?rios, mas porque h? espectadores e trovadores que testemunham, registram e difundem os feitos do campo automotor. Os meios audiovisuais facilitaram a tarefa desse fascismo da forma, campo totalmente distante da imagem-afei??o.

Dizemos isso porque, para Walter Benjamin (1994: 195), o "fascismo da forma" ? o movimento onde "todos os esfor?os para estetizar a pol?tica convergem para um ponto. Esse ponto ? a guerra".

Guerra essa que ? ressaltada em seu car?ter t?cnico, maqu?nico, logo est?tico. Isso ? bem exemplificado pela frase de Marinetti (apud BENJAMIN, 1994: 195) de que "a guerra ? bela, porque gra?as ?s m?scaras de g?s, aos megafones assustadores, aos lan?a-chamas e aos tanques, funda a supremacia do homem sobre a m?quina subjugada. A guerra ? bela, porque inaugura a metaliza??o on?rica do corpo humano". Eis aqui o homem-m?quina, t?o comum nas poesias de ?lvaro de Campos, por exemplo.

? essa rea??o a tudo que representa uma Primeiridade afetiva, ou seja, aquilo que se coloca enquanto puls?o, a??o, ? o nosso interesse quando falamos do nosso objeto f?lmico, ou seja, nada mais nada menos que corridas de carros: a competi??o esportiva de homens-m?quinas.

Assim, ap?s passar pela primeira reflex?o aqui proposta, conseguimos identificar a imagem das corridas de carro, do automobilismo: a imagem-a??o. Ora, a imagem-a??o ?, simplesmente, a Secundidade da imagem-movimento. Para explicitar isso, retornemos ?s categorias universais propostas pela semi?tica peirceana.

5

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download