B Descentralização – As Regras do Jogo 1 Introdução

B Descentraliza??o ? As Regras do Jogo

1 Introdu??o

Nesta sec??o introdut?ria, definimos as grandes linhas da discuss?o das Regras do Jogo da descentraliza??o, tratando algumas, mas n?o todas as caracter?sticas da interac??o entre as institui??es fundamentais do Estado. Remetemos, pois, o leitor interessado para outros estudos que analisam mais profundamente as regras institucionais, formais e informais, que regem as rela??es entre o poder executivo, legislativo e judicial, o aparelho de seguran?a, os media e as OSCs.56

As Regras do Jogo definem o quadro formal e legal das rela??es entre o Estado e os cidad?os, e entre as institui??es dentro do Estado ? entre o executivo, a Assembleia da Rep?blica, a justi?a, os meios de comunica??o, a sociedade civil, etc. O enquadramento geral ? dado pela Constitui??o de Mo?ambique e o respectivo corpo de leis e regulamentos. A Constitui??o de 1990 representa um ponto de viragem do Estado de partido ?nico p?s-independ?ncia para um Estado pluralista. At? essa altura, n?o era clara a separa??o entre os poderes executivo, legislativo e judicial. Na Constitui??o p?s-Independ?ncia, o Presidente da Rep?blica era o Chefe do Governo, do Estado e o Representante do Legislativo e da Assembleia Popular. Curiosamente, o Comit? Central do Partido da Frelimo, juntamente com o Presidente, o Conselho de Ministros e os deputados, tamb?m tinha a prerrogativa da iniciativa legislativa. A Constitui??o de 1990 alterou formalmente esta situa??o e definiu a separa??o de poderes, com fronteiras claras e formais entre os tr?s poderes. Isto foi confirmado na Constitui??o de 2004, que tamb?m sublinha a ideia de separa??o dos poderes, embora sublinhando igualmente, no seu pre?mbulo, a interdepend?ncia dos mesmos.

A constitui??o de 1990 e a sua sucessora de 2004 s?o constitui??es democr?ticas liberais, com algumas caracter?sticas t?picas das constitui??es socialistas ou socialdemocratas (por exemplo, no que toca a recursos naturais e a terra), que garantem os direitos b?sicos, como os direitos pol?ticos (sufr?gio universal), direitos civis (como as liberdades de imprensa e associa??o), habeas corpus e protec??o dos direitos humanos, para referir apenas alguns. Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais est?o em sintonia com a Declara??o Universal dos Direitos Humanos e com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, conforme consta do Artigo 43 da Constitui??o de 2004. A Constitui??o de 1990 tamb?m abordava, de certa forma, a mudan?a para a economia de mercado descrita nos Cap?tulos III e IV. Por exemplo, a terra continua a ser propriedade estatal e a constitui??o define quatro tipos de propriedade: do Estado, p?blica, privada e conjunta (p?blico-privada).

Um sistema presidencial, que preconiza um presidente forte, ? outro tra?o da constitui??o mo?ambicana. O presidente tem a prerrogativa de nomear o

56 Ver, por exemplo, ECORYS, 2008.

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primeiro-ministro, os presidentes de alguns tribunais principais (como o Tribunal Supremo, o ?rg?o judicial superior do pa?s), o Conselho Constitucional e o Tribunal Administrativo, bem como os Governadores Provinciais que, por sua vez, nomeiam os Administradores dos Distritos. O presidente tamb?m nomeia o Procurador-Geral da Rep?blica e o Presidente da Comiss?o Nacional de Elei??es, e preside ao Conselho de Estado, ?rg?o consultivo que inclui tamb?m o l?der da oposi??o, alguns deputados ? Assembleia da Rep?blica (DAR), ex-presidentes e o Primeiro-Ministro. Al?m disso, a Presid?ncia tem algumas prerrogativas exclusivas no processo legislativo, atrav?s da exclusividade de usar um mecanismo simplificado que lhe permite apresentar projectos de lei ? Assembleia da Rep?blica que devem ser inclu?dos na agenda da sess?o seguinte, para discuss?o imediata.

Desde as primeiras elei??es multipartid?rias de 1994, decorrentes da reforma constitucional de 1990 e do AGP de Roma, fazem parte integrante das Regras do Jogo a democracia multipartid?ria e as elei??es regulares gerais e aut?rquicas. A democracia eleitoral mo?ambicana tem-se caracterizado por institui??es eleitorais fr?geis; mudan?as frequentes da legisla??o e de regras eleitorais; um excesso de pequenos partidos oportunistas sem financiamento, sem programas genu?nos e nenhuma hip?tese de obter um lugar na Assembleia da Rep?blica; um partido no poder profundamente arreigado nas institui??es do Estado; um partido dominante da oposi??o, com um aparelho militar activo e, muitas vezes, um discurso agressivo, bem como repetidas e bem documentadas tentativas de manipula??o e fraude eleitoral. Estes factores constituem entraves ? concorr?ncia eleitoral e ? representatividade, reduzem a efic?cia dos controlos e equil?brios institucionais, e contribuem para lentid?o dos progressos na via da consolida??o da democracia. Nesse sentido, Mo?ambique ? um dos casos de democracia paralisada entre a transi??o e a consolida??o, os chamados "sistemas de poder dominante" (Carothers, 2002, p. 11ff ). Isto representa um regime h?brido, devido ? sua combina??o de elementos autorit?rios e democr?ticos (Diamond, 2002). Dado que o partido dominante n?o renuncia ? sua pretens?o de dom?nio hegem?nico e de tentar activamente limitar o espa?o pol?tico dos seus concorrentes, a democratiza??o em Mo?ambique ?, assim, outro caso de movimento "da abertura para o fechamento" (Joseph, 1996).

Todas as elei??es gerais realizadas desde 1994 (ver figura abaixo) tiveram dois efeitos principais: em primeiro lugar, reproduziram o dom?nio pol?tico da FRELIMO e, em segundo lugar, confirmaram o sistema de dois partidos, Fre-namo,57 no qual os dois signat?rios do AGP de Roma n?o s? dominam a concorr?ncia pol?tica na Assembleia da Rep?blica e as elei??es, mas tamb?m a agenda nacional. E ? esta concorr?ncia que acaba por decidir sobre quest?es de guerra e paz, controlo de pessoas e territ?rio, aloca??o de recursos, acesso a benef?cios, inclus?o e exclus?o, reconcilia??o

57 Composto por Fre(limo) e (Re)namo.

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A Economia Pol?tica da Descentraliza??o em Mo?ambique: Din?micas, Efeitos, Desafios

e potencial de conflito, com exclus?o de outras partes e das OSCs em geral, mantendo a popula??o mo?ambicana como ref?m. A "segunda guerra civil" (Igreja, 2015) entre o governo da Frelimo e o partido Renamo, que se deu entre 2013 e 2014, apenas confirma esta an?lise (ver Sec??o C.2.1).

Figura 2: Resultados Eleitorais, 1994-2014

%

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1994

Frelimo Presidencial Renamo Parlamentar Frelimo + Renamo

1999

2004 Year

Frelimo Presidencial

MDM Presidencial

Renamo + MDM

Nota: MPM = Movimento Democr?tico de Mo?ambique

Fonte: Os autores, com base em dados da CNEa

2009

2014

Renamo Presidencial MPM Parlamentar Aflu?ncia ?s urnas

Conforme mencionado acima, a Frelimo mant?m o seu dom?nio pol?tico, o que permitiu ao partido produzir legisla??o que muitas vezes emanava do Executivo (governo central), corroborada e aprovada pela Comiss?o Pol?tica da Frelimo e promulgada com a maioria da Frelimo na AR. Obviamente, isto visava consolidar a sua posi??o, poder e interesses no que denominamos OAL. A legisla??o relativa ? descentraliza??o n?o ? excep??o.

Como vimos anteriormente, existem rela??es informais que fazem parte das Regras do Jogo, por exemplo, entre o partido Frelimo, o Estado e a economia. Assim, os actores pol?ticos, administrativos e econ?micos desempenham o seu papel n?o apenas aceitando as regras formais definidas pelo "p?blico c?vico", mas tamb?m "cumprindo as regras do jogo", para contornar as regras formais segundo regras n?o codificadas publicamente, definidas nos outros "p?blicos" referidos na sec??o anterior. Especialmente num sistema de rent seeking (procura de rendimentos improdutivos) e de clientelismo-patrimonial, as regras informais e formais s?o, portanto, incongruentes com a pr?tica econ?mica e pol?tica de actores principais nas franjas marginais das

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regras formais, fora dela e/ou em contradi??o com elas. Um bom exemplo ? a terra ser vendida num mercado informal (mercado negro), embora a constitui??o e a lei da terra pro?bam essas transac??es.58 Outro exemplo ? a manipula??o das regras de aquisi??o e contrata??o a favor de proponentes cujas propostas n?o obedecem aos requisitos legais e outros, ou em que as regras formais foram manipuladas (DFID, 2011). Assim, a corrup??o pode ser explicada em parte como a utiliza??o do espa?o de manobra que existe para os representantes de ag?ncias estatais, por um lado, e para os neg?cios das empresas, por outro, ignorando ou contornando as regras formais e seguindo as regras informais estabelecidas por eles pr?prios. Num Estado como Mo?ambique, em que a) o sentido de cidadania e os direitos associados n?o s?o exercidos por todos os mo?ambicanos, b) o sector da justi?a (incluindo o Gabinete Central de Combate ? Corrup??o) ? institucionalmente fraco, tem poucos recursos e depende, em termos or?amentais, do executivo, e em que c) a Pol?cia de Investiga??o Criminal s? recentemente se tornou mais influente e mais independente59, fazendo anteriormente parte integral do executivo (Minist?rio do Interior), ? generalizada a impunidade dos infractores. O Centro de Integridade P?blica (CIP) documentou muitos desses casos.

Na primeira subsec??o, vamos centrar-nos nas Regras do Jogo (formais) para a descentraliza??o. Na segunda subsec??o, estas ser?o complementadas com a discuss?o de dois exemplos de regras informais: a Presid?ncia Aberta e Inclusiva (PAI), promovida pelo presidente Guebuza, e a import?ncia da base local no acesso a cargos de poder dentro da Frelimo.

2Descentraliza??o: Enquadramento Legislativo e Pol?tico ? um Resumo

2.1 Enquadramento Institucional e Formas de Descentraliza??o Em Mo?ambique, coexistem duas concep??es e abordagens diferentes da descentraliza??o, inscritas na constitui??o mo?ambicana desde a sua altera??o parcial em 1996 e na legisla??o espec?fica (Lei 2/2007, 3/2004): devolu??o, ou descentraliza??o democr?tica; e desconcentra??o, ou descentraliza??o administrativa. A primeira ?, em termos legais e em termos de pol?ticas, enquadrada como o desenvolvimento dos munic?pios. Estes s?o dotados de uma certa autonomia fiscal e administrativa e t?m elei??es regulares para presidentes dos CMs e para as AMs, enquanto os ?ltimos, os ?rg?os Locais do Estado (OLE) central, s?o institui??es subordinadas, com pouca autonomia, mas com algumas fun??es administrativas e de gest?o desconcentradas.

58 Sintetizado no ditado popular `"A terra n?o se vende, compra-se." 59 Agora chamada Servi?o Nacional de Investiga??o Criminal (SERNIC).

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A Economia Pol?tica da Descentraliza??o em Mo?ambique: Din?micas, Efeitos, Desafios

A figura que se segue d? uma panor?mica simples da estrutura do governo local (antes do aumento do n?mero de distritos):

Figura 3: Estrutura da administra??o territorial

Geogr?fico

Politico

Nacional

Provincial

11 Provincial

Governo Nacional

Prov?ncias: planear, coordenar e monitorar as actividades distritais, mais infra-estruturas e outras tarefas de interesse provincial.

Local

128 Distritos

53 Munic?pios

Desconcentra??o

Descentraliza??o Regula??o Fluxo financeiro

Distritos e munic?pios: servi?os urbanos t?picos (agua, saneamento, arruamentos, etc.) mais turismo, desporto e cultura. Esta prevista a devolu??o de educa??o b?sica e das responsabilidades de sa?de aos munic?pios. Os distritos actuam como agentes das prov?ncias no fornecimentos da educa??o, sa?de e servi?os sociais.

Fonte: Banco Mundial, 2014 (editado pelos autores, traduzido por Vitor Lindegaard)

As duas componentes da descentraliza??o fizeram e fazem parte do discurso pol?tico estabelecido e dos programas de consecutivos governos, inclusive o do actual governo de Nyusi. Neste programa de governo, fazem parte do Pilar 1 ("consolida??o do Estado de direito democr?tico, boa governa??o e descentraliza??o"),60 um dos tr?s pilares que sustentam a implementa??o do Plano Quinquenal do Governo.61 O Programa destaca ainda a "inova??o" do enfoque integrado e intersectorial que procura evitar abordagens governativas sectoriais ou verticais.

60 Especificamente relacionado com a descentraliza??o, o Plano Quinquenal do governo de Nyusi define o seguinte objectivo: "Continuar a reforma e a capacidade de desenvolvimento das administra??es locais, munic?pios e assembleias provinciais." 61 As suas prioridades s?o: a) a consolida??o da unidade nacional, da paz e da soberania; b) desenvolvimento do capital humano e social; c) promover o emprego e melhorar a produtividade e a competitividade; d) desenvolvimento das infraestruturas econ?micas e sociais, e, finalmente, e) assegurar a gest?o sustent?vel e transparente dos recursos naturais e ambientais.

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