As máquinas de diversão e a inteligência da criança
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INTERCOM ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXIV Congresso Brasileiro da Comunica??o ? Campo Grande /MS ? setembro 2001
As m?quinas de divers?o e a intelig?ncia da crian?a
Mirna Feitoza Pereira (PUC-SP)
Resumo Este texto trata das articula??es da intelig?ncia da crian?a com as m?quinas de divers?o -videogames, TV, jogos de computador e divers?es veiculadas na Internet. A hip?tese ? que ao interagir com essas m?quinas a crian?a desenvolve um tipo de intelig?ncia e adquire um repert?rio pr?prio de seu tempo, numa rela??o que ? estimulada pelo princ?pio da brincadeira. Para discorrer sobre a intelig?ncia da crian?a na sua int erface com as m?quinas, a autora parte de teorias do conhecimento que concebem o sujeito em constante aprendizado nas suas rela??es com formas diferentes de sua natureza ?seja de ordem intelectual, cultural, f?sica, biol?gica ou tecnol?gica. Palavras-chave : m?quinas, intelig?ncia, crian?a
Nos quatro anos que trabalhei com jornalismo para crian?as1, precisei formular algumas id?ias sobre a rela??o da crian?a com as divers?es eletr?nicas ?desenhos animados, videogames, jogos de computador? e mais recentemente com as divers?es da Internet. Essa foi uma necessidade profissional, uma vez que eu n?o tinha experi?ncia anterior com crian?as nem forma??o na ?rea de educa??o que me desse par?metros para lidar com um p?blico t?o espec?fico e vigiado pelos adultos. Inicialmente, inclui esse produtos no hall das "porcarias", numa atitude de preven??o contra o que poderia ser prejudicial ?s crian?as.
De modo geral, essa atitude era refor?ada por pais e professores preocupados com a educa??o das crian?as. O argumento mais comum era que essas divers?es apresentavam conte?dos violentos, que poderia influenciar comportamentos desse tipo, vide os crimes cometidos por crian?as e adolescentes nos Estados Unidos, que foram associados ? viol?ncia dos filmes, jogos de computador e videogame. Outra preocupa??o era com o est?mulo ao isolamento social, uma vez que n?o ? necess?rio estar com amigos para brincar de videogame, computador ou para assistir a desenhos animados na TV ?como se fosse preciso estar em grupo para ler um livro. O est?mulo ao consumo tamb?m era criticado por pais e professores, j? que essas divers?es estimulam o consumo de uma enxurrada de produtos derivados delas.
Desse modo, quando as reportagens abordavam essas divers?es era comum os adultos criticarem o caderno, considerando o assunto prejudicial ? forma??o das crian?as2; quando enfocavam temas relacionados ? educa??o formal ?como literatura, hist?ria, ci?ncia e artes?, as manifesta??es eram elogiosas3. Se a rea??o dos adultos, de modo geral, era essa, as crian?as adoravam4. Nas cartas, uma das se??es mais pedidas por elas, principalmente pelos meninos, era a se??o "Games", que sempre destacava um jogo de videogame, apresentando
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dicas para ultrapassar as "fases" (como s?o chamadas as etapas de dificuldade dos jogos)5. A mesma se??o tamb?m estava entre as mais criticadas por pais e professores, por causa da rela??o com a viol?ncia.
A experi?ncia com as crian?as por meio de entrevistas, organiza??o de grupos para produ??o de reportagens6, a leitura das cartas me fez sair da posi??o defensiva e mostrou que essa mesma divers?o que estimula o consumo e veicula a viol?ncia tamb?m instiga a intelig?ncia e gera aprendizado e cultura. E tudo por isso por meio da divers?o, da brincadeira. O fen?meno "Pok?mon" foi o marco dessa percep??o. Criado no Jap?o em 1996, a partir do jogo de videogame "Pocket Monsters" ("monstros de bolso", em portugu?s), da Nintendo, os personagens ganharam o mundo na forma desenhos animados, videogames, filmes, cards, jogos de computador, brinquedos, proliferam pela Internet, entraram no vestu?rio das crian?as, viraram acess?rios, enfim, tornaram-se um modo de express?o e linguagem pr?prias das crian?as.
S?o v?rios os fatores que chamam aten??o no fen?meno "Pok?mon", como a capacidade da s?rie de atingir crian?as de todas as idades, sem precisar adequar a linguagem para facilitar compreens?o das crian?as menores. N?o adequar a linguagem e no entanto despertar o interesse em crian?as de idades diferentes ? um fator que realmente deve ser considerado, porque a s?rie tem uma linguagem complexa. Os mais de 150 personagens sequer falam, apenas balbuciam os seus nomes. No auge da mania, a brincadeira entre os f?s era demonstrar quem sabia os nomes de todos pok?mons. Quem sabia o maior n?mero de esp?cies, impressionava mais. N?o raro, era poss?vel encontrar quem conhecesse todos os pok?mons catalogados.
A introdu??o de palavras e significados pouco comuns ao repert?rio das crian?as tamb?m ocorreu com esse seriado, como a palavra "evolu??o", que passou a ser de dom?nio das crian?as. Na s?rie, "evoluir" n?o significa se transformar em outro ser mais poderoso num piscar de olhos, como ? comum aos her?is tradicionais. Para evoluir, os pok?mons precisam passar por treinamento, lutam (em disputas entre si, comandadas por seus treinadores) e sofrem, se machucam, para evoluir. Mas sem sangue, mortes ou armas.
A s?rie "Pok?mon" tem outras sutilezas, e estamos certos que s? ela j? renderia um estudo de caso importante. No entanto, ela entra aqui apenas para ilustrar uma quest?o mais geral: as divers?es eletr?nicas e digitais (desenhos animados, videogames, jogos) e as divers?es geradas pela Internet (jogos, chats, sites etc.) instigam a intelig?ncia da crian?a ou s?o apenas produtos de consumo r?pido?
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Historicamente, esta quest?o surge a partir da segunda metade do s?culo 20, com o estreitamento das rela??es homem-m?quina e com as profundas altera??es provocadas por essa intera??o no cotidiano, na cultura, nas artes, no comportamento, nas formas de conhecer e pensar. Se at? os anos 70 era comum uma oposi??o entre cultura e tecnologia, separando em blocos os apocal?pticos e os integrados, a populariza??o dos meios eletr?nicos, a substitui??o das m?quinas de escrever pelos computadores, os caixas eletr?nicos nas cal?adas, os cart?es magn?ticos, as senhas, a m?sica eletr?nica e, sobretudo, o aparecimento da Internet tornou essa contradi??o uma caricatura dos tempos da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, o incremento tecnol?gico da comunica??o nas ?ltimas d?cadas do s?culo 20, alterando os costumes, a est?tica, a cultura s? confirmou a tese de McLuhan (1964): "O meio ? a mensagem".
O repert?rio que surge com as divers?es eletr?nicas e digitais tamb?m s?o exemplos dessa frase enigm?tica de McLuhan. Ele ultrapassa o cotidiano da crian?a e do adolescente e se torna parte da cultura, assim como aconteceu, a partir da d?cada de 20, com os personagens dos quadrinhos ?Mickey Mouse, Betty Boop, Gato Felix, Homem Aranha, Batman, Super Homem, Peanuts.
Com o incremento da ind?stria do entretenimento e o aparecimento dos meios eletr?nicos, os personagens dos quadrinhos ganharam mais popularidade, na forma de desenhos animados e s?ries de TV. Posteriormente, surgem os personagens criados para a pr?pria TV ?como Flintstones, Scooby Doo, Jetsons, Tom e Jerry, A Corrida Maluca. Nas ?ltimas d?cadas do s?culo 20, a TV por assinatura trouxe uma enxurrada deles. Entre os mais significativos, Simpsons, Laborat?rio de Dexter, As Meninas Superpoderosas, Rugrats, South Park.
Vale dizer que os quadrinhos continuam lan?ando personagens importantes para o repert?rio da crian?a, como Spawn, personagem que surgiu no in?cio dos anos 90 e j? virou videogame, desenho animado, filme. Ao mesmo tempo, os mang?s japoneses s?o a principal refer?ncia dos desenhos animados japoneses que repercutem no Ocidente, como Pok?mon, Dragon Ball, Sailor Moon, entre outros, e continuam influenciando personagens criados hoje do lado de c?, vide os olhos grandes e brilhantes de As Meninas Superpoderosas.
Apesar de bem mais restrito que a TV, os videogames tamb?m foram capazes de criar personagens que se tornaram ?cones da cultura contempor?nea. Pok?mon, criado no final dos anos 90, ? o maior exemplo disso. No entanto, nenhum outro personagem desse meio foi capaz de superar o encanto provocado por Lara Croft, a hero?na da s?rie de jogos "Tomb Rider". Lara conquistou rapidamente o circuito dos videogames e sua figura se
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tornou conhecida tamb?m fora dele, embora suas hist?rias tenham fechado o s?culo sem adapta??o para outras m?dias.
Somente no ano 2000, o filme "Lara Croft - Tom Raider" come?ou a ser produzido pela Paramount Pictures. No entanto, o ano terminou sem que a produ??o tenha entrado em cartaz. Sintom?tico: a est?tica introduzida por Lara Croft est? muito a frente para ser associada cronologicamente ao s?culo 20. Lan?ado em 1999, "Matrix" talvez seja o ?nico filme feito no s?culo 20 que tenha sido capaz de absorver, de forma competente, a est?tica introduzida pelos videogames. S?o as cenas de luta do filme, baseadas nos jogos de videogame, que fizeram dele um marco da hist?ria do cinema ?muito mais do que o j? caricato enredo do dom?nio das m?quinas sobre os homens.
?rf?os da TV e do cinema, os f?s de Lara Croft encontraram abrigo na Internet, onde o nome da personagem est? associado a uma infinidade de sites. A Internet, embora n?o tenha produzido nenhum ?cone de grande repercuss?o, j? tem personagens feitos exclusivamente com os recursos proporcionados por essa m?dia -como The 7th Portal e The Accuser, dois dos personagens criados por Stan Lee para o portal , que s? veicula hist?rias e personagens criados para a Internet (ver )7. No Brasil, outro exemplo: Cambo Rangers, personagens do cartunista F?bio Yabu, se tornaram conhecidos entre as crian?as com a exibi??o de seus "webepis?dios" no ZipKids, segmento infantil do portal ZipNet (ver .br). Em setembro do ano passado, essa turma ganhou vers?o em quadrinhos, com revista lan?ada pela Abril8.
O panorama descrito at? aqui serve para caracterizar o entrela?amento do tema proposto (as divers?es eletr?nicas e digitais voltadas para crian?as) com a cultura. No entanto, ele envolve outro aspecto importante: a rela??o com o aprender, que, nesse caso, ? movida pela brincadeira. Isto ?, ao brincar de videogame, ao assistir a um desenho animado na TV, ao fu?ar jogos e bate-papos na Internet, a crian?a vive experi?ncias, decifra mensagens, vence desafios, comete erros que a ajudam a compreender o mundo em que ela vive e a criar um repert?rio pr?prio de seu tempo.
Nossa hip?tese ? que existe uma rela??o de aprendizagem gerada nessa intera??o com o que chamaremos aqui de m?quinas de divers?o, e essa experi?ncia acontece dentro de casa, sem a media??o do professor. Sozinha, com um amigo ou em grupo, a crian?a desenvolve um tipo de intelig?ncia e aprendizado ao interagir com esses meios e linguagens ? e voluntariamente, porque ela quer brincar, se divertir, passar o tempo. ? um aprendizado regido pelo princ?pio da brincadeira, da espontaneidade, e n?o da obrigatoriedade.
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Para investigar as articula??es das m?quinas de divers?o com a intelig?ncia da crian?a, ? preciso definir primeiro o tipo de intelig?ncia e o sujeito que nos servem de par?metro. N?o cabem, por exemplo, concep??es influenciadas por uma racionalidade centrada no sujeito, que nasce a priori e imp?e suas formas, nos moldes da raz?o kantiana, tampouco teorias contaminadas pela dualidade cartesiana, que p?e sujeito e objeto em constante oposi??o. Interessam teorias que concebam o sujeito em constante aprendizado em suas rela??es com formas diferentes de sua natureza, seja de ordem intelectual, cultural, f?sica, biol?gica, tecnol?gica. ? s? com um sujeito desse tipo que se torna poss?vel investigar a constitui??o da intelig?ncia humana em suas conex?es com as m?quinas ?no caso, a intelig?ncia da crian?a na sua interface com as m?quinas de divers?o.
Nesta perspectiva, Pierre L?vy (1990) apresenta o seguinte conceito de intelig?ncia: "A intelig?ncia ou a cogni??o s?o o resultado de redes complexas onde interagem um grande n?mero de atores humanos, biol?gicos e t?cnicos. N?o sou `eu' que sou inteligente, mas `eu' com o grupo humano do qual sou membro, com minha l?ngua, com toda uma heran?a de m?todos e tecnologias intelectuais (dentre as quais, o uso da escrita). Para citar apenas tr?s elementos entre milhares de outros, sem o acesso ?s bibliotecas, ?teis e numerosas conversas com os amigos, aquele que assina este texto n?o teria sido capaz de redigi-lo. Fora da coletividade, desprovido de tecnologias intelectuais, `eu' n?o pensaria. O pretenso sujeito inteligente nada mais ? que um dos micro atores de uma ecologia cognitiva que o engloba e restringe." (L?VY: 1990, p. 133).
Segundo L?vy, desde o seu nascimento, o "pequeno humano", no caso, a crian?a, se constitui atrav?s de l?nguas, de m?quinas, de sistemas de representa??o que estruturam sua experi?ncia: "O ser cognoscente ? uma rede complexa na qual os n?s biol?gicos s?o redefinidos e interfacetados por n?s t?cnicos, semi?ticos, institucionais, culturais. A distin??o feita entre um mundo objetivo inerte e sujeitos-subst?ncias que s?o os ?nicos portadores de atividades e de luz est? abolida. ? preciso pensar em efeitos de subjetividades nas redes de interfaces e em mundos emergindo provisoriamente de condi??es ecol?gicas locais." (L?VY; 1990, p. 161).
Posteriormente, ao aprofundar a reflex?o sobre o impacto das novas tecnologias na cultura, Pierre L?vy chega ao conceito de intelig?ncia coletiva, definindo-a do seguinte modo: "? uma intelig?ncia distribu?da em toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobiliza??o efetiva das compet?ncias." (L?VY; 1994, p. 28). Esse conceito se torna mais importante ? tese defendida aqui ? medida que est? estritamente ligado ? cultura, uma vez que pretendemos inserir as m?quinas de
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