Versus meninas: representações de gênero em desenhos ...

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Meninos versus meninas: representa??es de g?nero em desenhos animados e seriados televisivos sob olhares infantis

Meninos versus meninas: representa??es de g?nero em desenhos animados e seriados televisivos sob olhares infantis

Resumo

Joice Ara?jo Esperan?a* Cleuza Sobral Dias**

Este artigo apresenta reflex?es suscitadas por uma experi?ncia investigativa acerca do consumo televisivo na inf?ncia. O referido estudo buscou conhecer as intera??es que as crian?as estabelecem com as produ??es televisivas, identificando as aprendizagens constru?das pelos telespectadores infantis ao se apropriarem de suas mensagens e conte?dos. Participaram da pesquisa 24 crian?as, estudantes de uma escola da rede p?blica de ensino do munic?pio de Rio Grande. Sob a orienta??o dos pressupostos da abordagem qualitativa, foram realizadas observa??es, entrevista coletiva e organizadas situa??es de reflex?o, debate e produ??o na sala de aula, focalizando o desenho animado Tr?s Espi?s Demais e o seriado Power Rangers For?a Animal, o que permitiu conhecer as interpreta??es do grupo a respeito dos seus enredos e personagens. Ao longo deste texto, em espec?fico, problematiza-se o g?nero como categoria de an?lise, evidenciando que as produ??es televisivas direcionadas ?s crian?as constroem representa??es marcadas por oposi??es e dualismos, ensinando modos de ser menina e menino pautados em significados culturais hegem?nicos.

Palavras-chave: Produ??es televisivas; Crian?as; Representa??es de g?nero.

Boys versus girls: representations of gender in cartoons and TV series according to the children's view

Abstract

This article presents insights raised by an investigative experience concerning the television consumption in childhood. Such study aimed at learning the interactions established by children with such shows, identifying what is learned by them as viewers as they get the message and content from the media. Twentyfour children took part in this study, all of whom were students from public schools in the city of Rio Grande-RS. Under the orientation of qualitative approach's assumptions, observations and interviews were carried out, in order to understand how the access to TV was processed within the family environment, as well as

* Pedagoga, Mestre e Doutoranda em Educa??o Ambiental pela Univeridade Federal do Rio Grande, Professora Assistente do Instituto de Educa??o da referida institui??o. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

** Doutora em Educa??o, professora do Instituto de Educa??o e do Programa de P?s-gradua??o em Educa??o Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

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to find out the preferences of children concerning TV shows. As the study went on, reflective situations were proposed, debated and produced in the classroom, focusing on the cartoon Totally Spies (Tr?s Espi?s Demais) and TV series Power Rangers Wild Force (Power Rangers For?a Animal), which enabled us to unveil the interpretations of the group concerning to the plots and characters of such shows. Throughout the text, specifically, gender is focused as a category of analysis, highlighting that TV shows tailored to children build constructs based on oppositions and dualisms, teaching differentiated ways of being for girls and boys based on hegemonic cultural meanings.

Keywords: TV shows; Children; Gender representations.

A TV como espa?o de aprendizagem

O consumo televisivo na inf?ncia tem mobilizado o interesse de professores/as e pesquisadores/as. Isso n?o acontece por acaso. Quem convive com as crian?as no cotidiano escolar observa a presen?a dos temas, conte?dos e personagens da m?dia televisiva em suas rela??es.

Diversos estudos, cujo foco de an?lise recai sobre as formas de acesso e os usos da TV entre as novas gera??es (PORTO, 2000; GROEBEL, 2002; MERLO-FLORES, 2000, 2003), assinalam as aprendizagens constru?das por crian?as e jovens a partir da m?dia televisiva, atentando para o ato de que ela excede os limites do entretenimento, constituindo-se, a exemplo da escola, como um local de ensino (GIROUX, 2001). A televis?o veicula informa??es, conhecimentos e valores que se dirigem ? educa??o das crian?as na contemporaneidade (FISCHER, 2003).

Orientadas por este entendimento, desenvolvemos uma pesquisa com o intuito de investigar as intera??es que as crian?as estabelecem com as produ??es televisivas, buscando identificar as aprendizagens constru?das pelos telespectadores infantis ao se apropriarem dos conte?dos e personagens da m?dia.

Trajet?ria investigativa

A investiga??o foi vivenciada com 24 crian?as, na faixa et?ria de 7 a 9 anos, de uma escola da rede p?blica do munic?pio de Rio Grande/RS no decorrer dos anos letivos de 2005 e 2006. Sob a orienta??o dos pressupostos da abordagem qualitativa de pesquisa,? foram realizadas observa??es e entrevistas, a fim de compreender como se processava o acesso ? TV no ambiente familiar, bem como conhecer as prefer?ncias das crian?as concernentes ? programa??o televisiva.

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A partir das observa??es e do conv?vio com o grupo participante da pesquisa, identificamos as brincadeiras, os desenhos e as narrativas orais como formas de express?o privilegiadas das crian?as. A entrevista coletiva permitiu conhecer o que o grupo preferia assistir na TV: o desenho animado Tr?s Espi?s Demais (Totally Spies) e o seriado Power Rangers For?a Animal (Power Rangers Wild Force), embora o conjunto dos dados aponte o acesso ilimitado ?s demais grades da programa??o dos canais abertos. Na continuidade da investiga??o, buscamos conhecer as interpreta??es e olhares do grupo acerca dos conte?dos e personagens dos referidos materiais televisivos, a partir de situa??es coletivas de reflex?o, debate e produ??o na sala de aula. No processo de an?lise identificamos aproxima??es entre as diversas manifesta??es documentadas.

Neste texto, em espec?fico, elegemos o g?nero como categoria de an?lise, com a inten??o de problematizar o conjunto de representa??es constru?do socialmente para atribuir significados, s?mbolos e diferen?as para cada um dos sexos (AUAD, 2006). Portanto, entendemos que as identidades de g?nero s?o constru?das no ?mbito da cultura e buscamos problematizar a vis?o naturalizada e essencializada que caracteriza meninas e meninos, homens e mulheres nas produ??es televisivas direcionadas aos p?blicos infantis, privilegiando as manifesta??es e as interpreta??es formuladas pelo grupo de crian?as participante da pesquisa.

Interesses e prefer?ncias das crian?as pelas produ??es televisivas

"Desenho de guri"... "desenho de guria"... Assim as crian?as identificavam os desenhos animados e justificavam suas prefer?ncias. Portanto, apenas meninas citaram o desenho animado Tr?s Espi?s Demais e apenas meninos citaram o seriado Power Rangers For?a Animal respectivamente como os seus favoritos. Ademais, os meninos afirmaram n?o assistir aos desenhos animados protagonizados por personagens meninas e mulheres, isto ?, Tr?s Espi?s Demais e Meninas Superpoderosas (Power Puff Girls). J? as garotas expressaram descontentamento em rela??o aos desenhos que apresentavam garotos como personagens principais, tais como: Jackie Chan, Megaman, Homem-aranha (Spider-man), Beyblade e Dragon Ball Z.

As narrativas das crian?as registradas no contexto da pesquisa sugerem que a express?o "desenho de guri" era empregada para classificar as produ??es televisivas que retratavam garotos como personagens principais e enredos que giravam em torno de temas sobre embates f?sicos, competi??o e automobilismo. No extremo oposto dessa classifica??o, encontravam-se os "desenhos de guria", aqueles que possu?am protagonistas garotas e, em algum ponto dos seus enredos, abordavam temas relacionados ao que tradicionalmente ? associado ao universo cultural feminino: ?nfase em relacionamentos amorosos, apar?ncia, roupas e maquiagem. Portanto, havia uma n?tida oposi??o nos conte?dos, nos cen?rios e nos temas focalizados pelas produ??es televisivas que concentravam o interesse de meninas e de meninos.

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Essas distin??es estabelecidas pelas crian?as levam a crer que os enredos e personagens das produ??es televisivas direcionadas aos p?blicos infantis privilegiam representa??es estereotipadas e padronizadas acerca dos modos de ser menina e de ser menino a partir de associa??es acentuadamente restritivas quanto aos seus comportamentos, ocupa??es, prefer?ncias e aspira??es. Assim, os desenhos animados e seriados, ao lado de outras produ??es da m?dia, constituem-se como inst?ncias educativas que colocam em circula??o concep??es de g?nero, as quais, na maior parte dos casos, enfatizam determinados padr?es hegem?nicos de masculinidade e de feminilidade (RAEL, 2007).

O confronto de interesses e prefer?ncias ? percebido tamb?m em suas rela??es durante o desenvolvimento da pesquisa, uma vez que as crian?as se afrontaram ao ouvirem respostas diferentes das suas: as meninas dizendo que os desenhos animados citados pelos meninos eram "muito chatos", "sem gra?a" e os meninos caracterizando os desenhos animados preferidos pelas meninas como "nada a ver". As diferen?as marcantes entre as prefer?ncias de meninos e meninas aparecem ainda em outras manifesta??es, como as brincadeiras inspiradas nos enredos e personagens das produ??es televisivas.

A??es l?dicas inspiradas nas produ??es televisivas

Uma vez que as brincadeiras se relacionam com o contexto social e cultural no qual as crian?as se inserem, elas incorporam tamb?m elementos presentes na televis?o, fornecedora generosa de imagens variadas (BROUG?RE, 2004). E a apropria??o de temas e conte?dos da TV expressos na organiza??o de brincadeiras tamb?m suscita reflex?es sobre as representa??es de g?nero constru?das pela m?dia.

Os meninos optavam pelo seriado Power Rangers For?a Animal e pelo desenho animado Dragon Ball Z como tema para a organiza??o de brincadeiras, enquanto as meninas inspiravam-se no desenho animado Tr?s Espi?s Demais, nas personagens da novela Am?rica, exibida pela emissora Rede Globo durante o desenvolvimento da pesquisa, e em cantoras famosas, como Sandy e Kelly Key, para brincar.

Por?m, a separa??o entre os grupos de meninas e de meninos podia ser observada em outras brincadeiras, n?o apenas naquelas associadas ? manipula??o dos conte?dos de desenhos animados seriados e televisivos, como brincar de casinha ou vestir bonecas entre as meninas, enquanto os meninos brincavam com carrinhos e caminh?es, travavam competi??es com bonecos e jogos de bola de gude. Diante disso, constatamos que o fato de meninos e meninas expressarem interesses e escolhas distintas durante as brincadeiras relacionava-se n?o apenas com o acesso a produ??es da m?dia que constroem representa??es de g?nero caracterizadas por oposi??es bin?rias. Essa seria uma maneira determinista de pensar acerca do modo como as crian?as atribuem

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sentidos a essas produ??es, j? que ignora as constru??es sociais e culturais que engendram diferen?as e levam a separa??o entre meninas e meninos.

Ao se considerar as interpreta??es que as crian?as elaboram acerca dos desenhos animados, filmes e seriados televisivos n?o se pode ignorar os fatores culturais distintos relacionados ao que socialmente ? admitido e valorizado no tratamento de meninas e meninos. Nessa perspectiva, Jones (2004) destaca que os pais t?m a tend?ncia de n?o derrubar as filhas no ch?o nem lutar com elas, como fazem com os filhos, d?o mais ?nfase ? apar?ncia das meninas, d?o mais aten??o aos machucados e ?s dores das meninas. Ainda que a m?dia veicule significados sobre as identidades de g?nero, isto ?, o modo como socialmente se vive a masculinidade ou a feminilidade (LOURO, 2005), ela n?o opera em um v?cuo sociocultural (DURKIN; LOW, 2000), mas articula-se a outros espa?os e experi?ncias ? como as que s?o vividas na fam?lia, na escola e nos grupos de pares ou de iguais ? pelas quais os sujeitos constroem aprendizagens diversas.

Entretanto, isso n?o impede a afirma??o de que as diferen?as marcantes de temas, associadas ? caracteriza??o dos comportamentos de meninos e meninas nos desenhos animados e seriados, contribuem para demarcar a separa??o de suas brincadeiras ou relegar ?s meninas posi??es coadjuvantes, quando se valem de temas das produ??es televisivas para brincar. Sob essa ?tica de pensamento, Giroux (2001) adverte que os desenhos animados, enquanto m?quinas de ensino ou produtores de cultura, legitimam concep??es acerca do masculino e do feminino. Segundo o referido autor, em muitas destas produ??es, as personagens s?o elaboradas dentro de identidades de g?nero estritamente definidas, refor?ando estere?tipos negativos sobre as meninas e as mulheres. Como exemplo, esse autor ressalta as personagens que vivem casos de amor e abdicam de seus ideais, citando o papel de submiss?o da mulher, no filme A Pequena Sereia, em que a protagonista Ariel ? advertida de que os homens n?o gostam de mulheres que falam.

E, do mesmo modo que os desenhos animados refor?am estere?tipos acerca das meninas, as produ??es da m?dia tamb?m fornecem elementos para meninos constru?rem no??es sobre masculinidade e sobre o que significa ser garoto (CHRISTIAN-SMITH; ERDMAN, 2001). Desse ponto de vista, os superher?is, as cenas de luta e as armas de brinquedo tradicionalmente entram no escaninho do que conhecemos como "cultura dos meninos" (JONES, 2004) e a escolha de um tema em espec?fico entre eles para organizar brincadeiras afirma esse padr?o dominante constru?do por diversas inst?ncias educativas, como os desenhos animados, seriados televisivos e filmes direcionados ?s crian?as.

Meninos e viol?ncia (de faz-de-conta)

No contexto da pesquisa, um tema central prevalece nas intera??es compartilhadas entre meninos e que remetem ? ludicidade: a viol?ncia de faz-

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