Estudo lexical dos nomes de sintomas e de doenças nos ...

Estudo lexical dos nomes de sintomas e de doen?as nos s?culos XVII e XVIII: compara??o entre o portugu?s e o franc?s

(?tude lexicale des noms de sympt?mes et de maladies aux XVIIe et XVIIIe si?cles: comparaison entre le portugais et le fran?ais)

Mariana Giacomini Botta1

1GMHP ? Grupo de Morfologia Hist?rica do Portugu?s (DLCV ? FFLCH/USP) Faculdade de Ci?ncias e Letras de Araraquara (FCL/CAr ? Unesp) Universit? Paris 3 Sorbonne Nouvelle

marianabotta@

R?sum? : Le but de cette ?tude est la v?rification et l'analyse de quelques unit?s lexicales appartenant ? la terminologie de la m?decine aux XVIIe et XVIIIe si?cles. M?me si ? l'?poque la m?decine s'?rigeait encore en science, certains termes d?crivent les sympt?mes, les maladies, les diagnostics, les traitements et les m?dicaments s'utilisaient d?j? couramment. Pour ?tudier ces emplois, nous nous basons sur un corpus de textes de la Gazeta de Lisboa, entre 1715 et 1800, et de la Gazette de France, entre 1631 et 1786. ?tant donn? que l'?change d'informations entre les pays et que la traduction des nouvelles ?taient des pratiques quotidiennes dans les journaux de l'?poque, la pr?sente analyse de la transition des termes de la m?decine entre deux langues de pays diff?rents, dans une contexte o? les ?tudes sur sant? se constituaient en science, semble int?ressante et utile aussi bien en ce qui concerne la terminologie, que la traductologie et la linguistique historique.

Mot-cl?s: Linguistique historique; terminologie; m?decine; gazettes; XVIIe et XVIIIe si?cles.

Resumo: A proposta deste trabalho ? a verifica??o e a an?lise de algumas das unidades lexicais que integram a terminologia da medicina nos s?culos XVII e XVIII. Embora naquela ?poca a medicina ainda estivesse se estabelecendo como ci?ncia, termos que designam sintomas, doen?as, diagn?sticos, tratamentos e medicamentos podem ser observados em uso na linguagem corrente. Para se estudar esses usos, trabalha-se com unidades extra?das de um corpus formado por textos da Gazeta de Lisboa, entre 1715 e 1800, e da Gazette de France, entre 1631 e 1786. Considerando-se que a troca de informa??es entre pa?ses e que a tradu??o de not?cias eram pr?ticas cotidianas das gazetas daquela ?poca, o estudo sobre a transi??o de termos da medicina entre as l?nguas de duas diferentes na??es, em um per?odo em que os estudos da sa?de se constitu?am como ci?ncia, mostra-se interessante e ?til tanto para a terminologia, quanto para a tradutologia e para a lingu?stica hist?rica.

Palavras-chave: Lingu?stica hist?rica; terminologia; medicina; gazetas; s?culos XVII e XVIII.

Introdu??o

A medicina ? uma das mais antigas atividades do homem, e estima-se que tenha surgido entre 460 e 377 a.C., com Hip?crates, que ? considerado o pai da medicina. Na Idade M?dia, a arte de curar ficava a cargo de religiosos e de barbeiros, estes ?ltimos por saberem lidar com a navalha e, assim, poderem drenar abscessos. Foi somente a partir da Era Moderna que surgiram pessoas que se ocupavam apenas da sa?de humana.

Nos s?culos XVII e XVIII, n?o apenas a medicina, mas tamb?m a qu?mica e a farm?cia ainda n?o estavam estabelecidas como ci?ncia e baseavam-se em conhecimentos emp?ricos e supersticiosos, mesclando-se ? alquimia. O surgimento de estudos sobre as drogas medicinais

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que eram levadas da ?ndia e da Am?rica e tamb?m sobre a import?ncia da higiene na preven??o de epidemias contribuiu para a mudan?a desse panorama.

Com o surgimento das primeiras gazetas impressas, a partir da segunda metade do s?culo XVI, not?cias de conte?do m?dico come?aram a ser publicadas, e uma parcela da popula??o passou a ter acesso a termos pouco usados anteriormente. Isso pode ser verificado nas p?ginas de jornais impressos dos s?culos XVII e XVIII, como o franc?s Gazette de France, e o portugu?s Gazeta de Lisboa.

Naquele tempo, em que os regimes mon?rquicos dominavam o cen?rio pol?tico da Europa, a vida pessoal de reis, imperadores e religiosos era de interesse geral. Considerados como fatos pol?ticos, os relatos sobre a sa?de dos monarcas s?o recorrentes nestas publica??es, e termos como febre, m?dico, enfermo, doen?a/enfermidade, parto/nascimento, entre outros, integram seus textos.

Com o objetivo de fazer um levantamento de quais eram esses termos e estudar seus usos, prop?e-se nesse trabalho uma an?lise da terminologia da medicina neste per?odo1, usada em textos informativos publicados nos primeiros jornais impressos da Fran?a de Portugal: a Gazette de France, que surgiu em 1631, criada por Th?ophraste Renaudot, e a Gazeta de Lisboa, publicada a partir de 1715 sob a dire??o de Jos? Freire de Monterroyo Mascarenhas. Os dois ve?culos de comunica??o informavam sobre acontecimentos de toda a Europa e tamb?m da ?sia, ?frica e Am?rica. As not?cias eram produzidas por uma rede de correspondentes espalhados por diversas localidades e tamb?m eram traduzidas de gazetas de outros reinos.

Conjunto das unidades lexicais dispon?veis de uma l?ngua, o l?xico ? um invent?rio aberto, que se amplia na medida em que as comunidades lingu?sticas aperfei?oam seus conhecimentos sobre a realidade e criam novas t?cnicas e ci?ncias. Desta maneira, o l?xico de uma comunidade documenta e acumula o conhecimento humano partilhado por uma sociedade.

A sofistica??o do conhecimento humano e o desenvolvimento cient?fico t?m como resultado o surgimento de sistemas l?xicos complexos, que s?o chamados de terminologias. Estas s?o uma necessidade do desenvolvimento das ci?ncias, que precisam de novos termos para nomear os conceitos que surgem, o que resulta tamb?m na amplia??o do repert?rio de signos lexicais de uma l?ngua. Assim, entende-se a terminologia como um conjunto de termos rigorosamente definidos, que s?o espec?ficos de uma ci?ncia, de uma t?cnica, de um dom?nio particular da atividade humana.

Para evitar ambiguidades e mal-entendidos, toda ci?ncia necessita de um conjunto de termos, definidos com rigor, por meio dos quais ela procura designar as no??es que lhe s?o ?teis. Em lingu?stica, a terminologia ? a disciplina que estuda sistematicamente a rotula??o e a designa??o de conceitos particulares a um ou v?rios assuntos ou campos de atividade humana, por meio de pesquisa e an?lise dos termos em contexto, com a finalidade de documentar e promover seu uso correto. Portanto, a terminologia tem por objeto te?rico as denomina??es dos objetos ou conceitos utilizados pelos diferentes dom?nios do saber,

1 Este artigo, que traz o tema tratado em simp?sio durante o 60? Semin?rio do GEL, ? uma vers?o resumida e revisada do trabalho apresentado no evento "Traduction, terminologie, r?daction technique : des ponts entre le fran?ais et le portugais. En hommage au Professeur Armelle Le Bars, nos dias 13 e 14 de janeiro de 2011, em Paris, Fran?a.

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o funcionamento na l?ngua das unidades terminol?gicas, os problemas de tradu??o, de classifica??o e de documenta??o dessas unidades. Consiste ainda no estudo da escolha e dos usos dos termos que fazem parte dos vocabul?rios especializados. Em terminologia, entende-se um termo como a combina??o indissoci?vel de uma denomina??o e um conceito.

Durante todo o processo de desenvolvimento e de estabelecimento da medicina como ci?ncia, uma linguagem pr?pria foi desenvolvida, e esta at? hoje ? muitas vezes mal compreendida pelos leigos. Isso se deve ao fato de os termos m?dicos, al?m de serem formados a partir de radicais, prefixos e sufixos gregos e latinos (na sua maioria), ainda prov?m (em menor n?mero) de elementos vern?culos ou procedentes de outros idiomas. Considerando-se que a tradu??o era pr?tica corrente nas gazetas dos s?culos XVII e XVIII, acredita-se que um estudo sobre a transi??o de termos da medicina entre duas l?nguas de dois diferentes pa?ses, em um per?odo em que os estudos da sa?de se constitu?am como ci?ncia, seja interessante e ?til tanto para a terminologia, quanto para a tradutologia e para a lingu?stica hist?rica. Trabalha-se com uma terminologia de orienta??o descritiva, fundamentada pelos princ?pios da lingu?stica, como a desenvolvida por Cabr? (1999) e na perspectiva da socioterminologia, definida, entre outros, por Gaudin (2003).

Composi??o do corpus, recolha das unidades e metodologia de an?lise

As unidades em an?lise foram extra?das de um corpus formado por textos 12 edi??es do jornal Gazeta de Lisboa (entre 1715 e 1800) e 14 edi??es da Gazette de France (de 1631 a 1786), ou seja, abrangendo os anos finais do s?culo XVII e todo o s?culo XVIII. Foram encontradas mais de 80 unidades que designam no??es que fazem parte da linguagem m?dica da ?poca, entre sintomas, tratamentos, procedimentos e nomes de doen?as. Destas, foram selecionadas 12 unidades, dez delas designando doen?as, escolhidas devido ? sua proximidade sem?ntica e ? exist?ncia de correspond?ncia entre as l?nguas portuguesa e francesa.

Cada uma das unidades selecionadas foi analisada separadamente e o seu emprego nos contextos dos quais foram retiradas foi comparado com as informa??es de dicion?rios da ?poca. Foram consultados o Dictionnaire de la langue fran?aise, de ?mile Littr? (1863, 1? edi??o), o Thresor de la langue fran?oyse, tant ancienne que moderne, de Jean Nicot (TLF, 1606), o Dictionnaire de l'Acad?mie fran?aise (1694; 1762; 1798 ? 1 ?, 4 ? e 5 ? edi??es), o Vocabulario portuguez & latino, de Raphael Bluteau (1712 ? 1728) e o Diccionario da lingua portugueza, de Antonio Moraes Silva (1813).

O estudo da terminologia a partir de um corpus hist?rico de l?ngua corrente

A Terminologia ? uma disciplina inter e transdisciplinar, que se encarrega da tarefa de analisar a express?o lexical formal da organiza??o dos conhecimentos cient?ficos, t?cnicos e tecnol?gicos, ou seja, os termos t?cnico-cient?ficos.

O termo, ou unidade terminol?gica, ? um componente constitutivo da produ??o do saber que possui caracter?sticas que favorecem a precis?o vocabular da comunica??o t?cnico-cient?fica. Qualquer unidade lexical pode se tornar um termo quando se adapta aos prop?sitos de uma determinada ?rea do saber. Al?m disso, deve-se considerar que os termos sofrem os mesmos processos e transforma??es t?picos do sistema lingu?stico, equiparando-se, assim, a uma unidade do l?xico comum.

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Embora os estudos terminol?gicos geralmente focalizem o funcionamento dos termos no momento presente, estudar o l?xico de uma l?ngua, e de uma l?ngua de especialidade, em um determinado per?odo pode permitir a capta??o de parte de sua hist?ria, que ? alterada a todo momento pela din?mica da renova??o lexical. Para Baudet (1988, p. 856), a perspectiva diacr?nica ? fundamental aos estudos terminol?gicos, pois s? ? poss?vel se estudar as l?nguas da ci?ncias estudando o seu desenvolvimento. Por se ocupar com o estudo dos termos, a Terminologia trabalha com voc?bulos que veiculam significa??es socialmente regulamentadas e inseridas em pr?ticas institucionais.

Desta forma, segundo Gaudin (2003, p. 11), "o estudo diacr?nico dos termos diz respeito ? historia das ci?ncias, das t?cnicas, dos discursos socialmente regulamentados e ? historia das ideias". Assim, ainda segundo este autor, os termos s?o ao mesmo tempo denomina??es e instrumentos de trabalho e de conceptualiza??o, e "s?o tomados em momentos discursivos e hist?ricos que alteram seus sentidos e os inscrevem na g?nese e na transforma??o dos conhecimentos e do mundo" (GAUDIN, 2003, p. 205).

An?lise dos dados

Por meio da leitura dos textos do corpus e da delimita??o do objeto de estudo ?s unidades usadas na denomina??o de doen?as, constatou-se que duas no??es s?o fundamentais para se entender qual era o conhecimento da ?poca sobre o funcionamento do corpo humano e sobre a ocorr?ncia de doen?as. Apesar de n?o designaram propriamente doen?as, as unidades humor e vapor faziam parte da terminologia da medicina da ?poca e estavam na base das cren?as sobre como e porque as doen?as afetavam os corpos.

A unidade humor possu?a sentido distante do atual e, em contextos com tem?tica sobre a sa?de, referia-se, ainda seguindo a teoria hipocr?tica, aos l?quidos e fluidos presentes no corpo humano, como o sangue, a saliva, a l?grima, o leite e o esperma, entre outros, como pode ser visto na ocorr?ncia:

(1) Ex. e. Rev. Arcebispo Bispo do Algarve lan?ou do bra?o copia de humor sanguineo. (GDL,2 3 de abril de 1755)

Esse significado era o mesmo tanto em portugu?s quanto em franc?s, como apontam os dicion?rios da ?poca:

[...] liquida subst?ncia nas plantas ou nos corpos dos animais [...] pelo humor n?o se entende apenas os quatro humores do corpo, como ? o sangue, fleima, colera e melancolia, mas todas as mais humanidades, como o leite e o esperma e ainda os humores recrementicios como ? a saliva, as lagrimas, o soro do sangue, os quais ou por copia ou por vicio ofendem a saude. (BLUTEAU, 1712-1728)

Substance liquide s?cr?t?e par un organisme vivant; Liquide normalement pr?sent dans un organisme vivant, g?n?ralement humain ou animal (sang, salive, p. ex.). (TLF, 1606)

A partir desse conhecimento, pensava-se que a maioria das doen?as era causada pelo excesso ou pela degenera??o dessas subst?ncias nos corpos, como afirma Bluteau:

2 A sigla GDL ? usada neste artigo para indicar os exemplos extra?dos do corpus da Gazeta de Lisboa.

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[...] que por copia ou por vicio ofendem a saude. Por vicio quando o sangue ? demasiado, sobejando nas veias, a fleima obstruindo os poros, o soro redundando por todas as veias. Por vicio quando o sangue apodrece, a fleima ? salgada, a colera e a melancolia ? podre ou requeimada, o esperma corrupto, o soro viciado, o leite grumoso, a saliva salgada, a urina acre, as lagrimas mordazes. (BLUTEAU, 1712-1728)

Pelas ocorr?ncias do corpus, percebe-se que, ao contr?rio, a unidade vapor era usada para designar um tipo de sintoma:

(2) Hum agradavel, e eficaz remedio, entre todos os mayores, para defender o cora?a? de todos os vapores, melancolicas, ancias, desmayos, palpita?oens, e de toda outra malignidade de que for acometido [...]. (GDL, 5 de julho de 1725)

No dicion?rio de Bluteau (1712-1728), no verbete vapor encontra-se a seguinte informa??o: "nos animais se levanta do est?mago e dos intestinos vapores, que ofendem o c?rebro", o que levaria a crer se tratar de gases / flatul?ncia. Mas o Dicion?rio da Academia Francesa (1694; 1762; 1798) mostra que n?o se conhecia ao certo o que eram o tais vapores: "Exhalaison suppos?e monter du sang et des autres humeurs jusqu'au cerveau (ex. vapeur maligne); ?tourdissements, vertiges, migraines, malaises divers".

Al?m dessas duas unidades, foram selecionadas outras dez unidades, designando nomes de doen?as, a maioria, acreditava-se, era causada pela desordem dos humores no corpo ou pela ocorr?ncia dos vapores. A lista desses termos pode ser verificada a seguir:

Tabela 1: Nomes de doen?as que ocorrem nas gazetas dos s?culos XVII e XVIII3

Portugu?s fluxo / defluxo Hemorragia Gota Apoplexia Gonorreia Bexigas Tisica sezonismo / febre ter?? pedra nos rins

Aborto

Franc?s fluxion h?morragie goutte / podagre apoplexie gonorrh?(e) / verole petite verole / pourpre phtisie fi?vre tierce pierre dans les reins / calcul r?nal avortement / fausse couche / couche avant terme

Sabe-se que a maioria dessas doen?as e sintomas j? eram conhecidos e eram descritos desde a antiguidade. O interesse deste trabalho est? em observar como este conhecimento era exposto nos primeiros jornais impressos e nos dicion?rios dos s?culos XVII e XVIII. As an?lises das unidades s?o apresentadas nas se??es seguintes.

3 Em alguns casos, mesmo sem ter sido encontrada a mesma ocorr?ncia nas publica??es dos dois pa?ses, foi estabelecida a correspond?ncia na outra l?ngua de acordo com os dados encontrados nos dicion?rios da ?poca j? citados.

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