NEOLOGISMOS E METALINGUAGEM: OS (DES)LIMITES DA …

NEOLOGISMOS E METALINGUAGEM: OS (DES)LIMITES DA PALAVRA EM ENSAIOS FOTOGR?FICOS, DE MANOEL DE BARROS

Andr? Almeida Alves PEREIRA1 Valdete Nunes SILVA2

RESUMO A proposta desta comunica??o ? refletir sobre os recursos ling??sticos utilizados por Manoel de Barros em Ensaios fotogr?ficos. O autor, que se vale da metalinguagem para a constru??o do texto liter?rio em praticamente toda a sua obra, tamb?m possui como particularidade o uso recorrente de neologismos, seja ao atribuir novo sentido a palavras j? existentes, seja por meio do emprego de palavras novas, n?o dicionarizadas, ou ainda, por meio de transposi??o de classes gramaticais. Ressalta-se que, neste livro, o poeta recorre ? imagem para ornar o lirismo e a simplicidade do texto. Nesse sentido, a escolha das palavras n?o constitui apenas um modo de articular a beleza e a frui??o, pr?prios da poesia, mas consiste em um jogo no qual subjazem uma reflex?o sobre a l?ngua portuguesa e a literatura. Pretende-se, portanto, analisar a constru??o do discurso e os efeitos de sentido que a metalinguagem e os neologismos produzem na composi??o po?tica de Ensaios fotogr?ficos.

PALAVRAS-CHAVE: poesia, neologismo; metalinguagem.

Que a beleza foi musa inspiradora dos mais lindos versos que sa?ram das m?os

de poetas desde Shakespeare a Drummond n?o ? novidade; muito menos que feitos

grandiosos foram relatados em epop?ias extraordin?rias por m?os como as de Homero e

Cam?es. Mas eis que surge a poesia de Manoel de Barros, que, contr?ria ao senso

comum, se faz despretensiosa da linguagem dif?cil, se quer in?til, desimportante e

povoa p?ginas com tudo que use o abandono por dentro e por fora.

O poeta assim se apresenta ao mundo: Fui criado no mato e aprendi a gostar

das coisinhas do ch?o. ? a partir dessa cita??o, que dialoga com sua vis?o de mundo,

sua simplicidade e seu gosto pela terra, que duas indaga??es se fazem poss?veis: de que

? feito o poema? De que se faz o poeta?

1UNILESTEMG- Centro Universit?rio do Leste de Minas Gerais Rua Isaulina Lim?o, 244 ? Bairro Planalto - CEP 35.171-039 - Coronel Fabriciano ? MG ? BRASIL andrealper2@ 2 UNILESTEMG- Centro Universit?rio do Leste de Minas Gerais Rua 104, 24 ? Bairro Cruzeirinho - CEP 35.180-112 - Tim?teo ? MG ? BRASIL valdetenunes@

Em se tratando de Manoel de Barros, s?o prov?veis as seguintes respostas: o poema ? feito de palavras; e o poeta ? feito de poesia. Palavras que levam ? reflex?o sobre a linguagem, poesia que traduz a pureza do olhar do poeta sobre a natureza, o simples, o belo. A linguagem reinventada.

A partir dos t?tulos de suas obras, como se pode perceber em Livro das ignor??as, Retrato do artista quando coisa, Poesia quase toda, O fazedor de amanhecer, o autor j? se anuncia um experimentador da l?ngua, um artista da palavra que se vale de recursos ling??sticos para sua constru??o po?tica.

Entretanto, compreender as influ?ncias na produ??o de Manoel de Barros n?o ? tarefa f?cil. Profundo conhecedor da proposta simbolista, inspira-se em Arthur Rimbaud para mesclar os sentidos da poesia, para experimentar os "deslimites da palavra". A forma e o conte?do pr?prios dos versos tradicionais tamb?m n?o s?o preocupa??es em seu exerc?cio po?tico. Contrariamente, o poeta parece embeber-se na poesia de Mallarm? ao dialogar com o branco da p?gina.

H?, tamb?m, a influ?ncia da arte moderna que, segundo o pr?prio autor, lhe fez entender a l?gica da poesia, de permitir que "uma ?rvore n?o seja mais apenas um retrato fiel da natureza: pode ser fustigada por vendavais ou exuberante como um sorriso de noiva". Os estudos sobre as artes pl?sticas contribuem para a beleza dos versos escritos pelo poeta, como se pode perceber, em toda a sua obra, refer?ncias a v?rios pintores, como Picasso, Mir?, Van Gogh e Braque. Al?m disso, s?o recorrentes em sua produ??o v?rios elementos visuais que remetem tanto a arte na?ve ? pela simplicidade dos referentes e a pintura destes sobre o papel ? quanto a uma arte mais elaborada, como a collage, numa sobreposi??o de objetos descartados, inutilidades, latas enferrujadas, insetos e detritos. O desafio se apresenta e se supera imediatamente ? nossa frente: o de fazer poesia com os restos.

Mas tais elementos n?o servem de subterf?gio para descartar o estudo no campo ling??stico da obra manoelina, que se destaca pelos constantes neologismos e met?foras, rompendo com os limites impostos pela l?ngua e dilatando as possibilidades da cria??o art?stica.

Ensaios fotogr?ficos ? o "retrato" perfeito de como os recursos ling??sticos s?o articulados no trabalho de Manoel de Barros. Poesia auto-explicativa, metalinguagem e neologismos s?o elementos que comp?em esse livro, constatadas no "texto a germinar sobre o branco do papel"; ou ainda, quando "as palavras se sujam de n?s na viagem, mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas".

Dividido em duas partes ? Ensaios Fotogr?ficos e ?lbum de Fam?lia ? o livro n?o encerra em si unicamente poesias relacionadas ao tema proposto, mas apresenta uma estrutura pr?pria de exposi??es fotogr?ficas ? na primeira parte ? e de ?lbuns particulares ? na segunda ? se considerarmos a fragmenta??o da obra em fotografias e os t?tulos dos poemas como se fossem legendas afixadas ao lado delas: Comparamento, Despalavra, O vento, Mir?; e Auto-retrato, O poeta, A doen?a, O provedor.

Se, por um lado, ? poss?vel perceber a influ?ncia das artes visuais no texto de Manoel de Barros, por outro podemos "ancorar" sua poesia ao lado de v?rios outros precursores dos neologismos. Cam?es, por exemplo, j? apontava para o desenvolvimento da l?ngua portuguesa, que ainda n?o possu?a a riqueza vocabular de hoje. Contrariando a opini?o dos conservadores de sua ?poca, que consideravam os neologismos uma afronta ? l?ngua, buscou nos radicais gregos e latinos a forma??o de novas palavras para que a l?ngua enaltecesse seu texto po?tico. ? a partir da cria??o do poeta lusitano que compreendemos, hoje, o que vem a ser mundo, o que ? estupendo, crepitante, eb?rneo, que ind?mito ? o mesmo que bravo, e que l?ctea diz respeito ? nossa gal?xia.

Cruz e Souza, um dos maiores expoentes do Simbolismo brasileiro, tamb?m faz uso de neologismos em seu processo criativo. Em Broqu?is, um de seus mais conhecidos livros, podemos ler em "Afra" a express?o "carne explosiva em p?lvoras e f?ria", ou ainda, o t?tulo de um outro poema: "Acrobata da dor". S?o tamb?m dele a cria??o das express?es crepusculamentos enlanguescentes, as belezas translucentes, as m?sicas clarinantes a violinar ritmalmente.

J? no Modernismo, temos o poeta Manuel Bandeira que, se dizendo inventor de "palavras que traduzem a ternura mais funda", deu ? literatura brasileira um dos mais belos verbos ? teadorar. E a partir do neologismo criado, sua conjuga??o no intransitivo: Teadoro, Teodora.

Guimar?es Rosa, inigual?vel inventor de palavras, ? maneira de Cam?es, utiliza radicais gregos e latinos e busca, ainda, outros elementos da l?ngua ind?gena e dos dialetos africanos para compor os processos de forma??o de seus neologismos, mostrando-nos, assim, como a l?ngua ? rica e que dela prov?m muito da magia liter?ria. Quem h? de negar a beleza proposta pela conjuga??o do verbo intransitivo da poesia de Bandeira? Ou na musicalidade que encontramos nos voc?bulos inventados por Cruz e Souza? E o que dizer, ent?o, do grande mestre Guimar?es Rosa, cuja linguagem reverbera sobre si mesma? As palavras s?o, portanto, instrumento de cria??o dos poetas.

Em Ensaios fotogr?ficos, o desejo de apurar a reinven??o verbal se faz a partir da associa??o dos significantes e significados, o que nos permite ver que na L?ngua Portuguesa uma palavra ? capaz de se transformar em v?rias, conforme o desejo do poeta. Tal arbitrariedade se evidencia, por exemplo, no excerto do poema "Despalavra":

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de p?ssaros. Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de ?rvore.

Em "O Fot?grafo", poema que abre a s?rie dos "ensaios", o trabalho com as

palavras faz surgir tanto a metalinguagem quanto os neologismos que provocam a

reestrutura??o gramatical na poesia manoelina:

(...) Ia o Sil?ncio pela rua carregando um b?bado. O sil?ncio era um carregador? Estava carregando o b?bado. Fotografei o carregador. (...) Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na exist?ncia mais do que na pedra. Fotografei a exist?ncia dela. Vi ainda um azul-perd?o no olho de um mendigo. Fotografei o perd?o. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.

O texto ? vestido com a met?fora do fot?grafo que, munido de sua c?mera, erra

pela madrugada registrando os mais sutis "objetos": o sil?ncio, o perd?o, o perfume, a

exist?ncia, o sobre. Encerrada ainda no poema, h? uma reflex?o sobre o processo

criativo no qual o poeta (fot?grafo) vasculha a mente (aldeia) ? procura das id?ias

(imagens) assim que se projetam.

A metalinguagem pode ser analisada, tamb?m, em "Comparamento":

Os rios recebem, no seu percurso, peda?os de pau, folhas secas, penas de urubu E demais trombolhos. Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema. As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas, nossas dem?ncias, nossas vaidades. E demais escorralhas. As palavras se sujam de n?s na viagem. Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas. E livres das tripas do nosso esp?rito.

Nesse poema, a filosofia serve de pano de fundo para versos que comparam o

percurso de um rio ao percurso das palavras, aquele recebendo "trambolhos" ao longo

do caminho, este recebendo "escorralhas" antes de desembocar na p?gina.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download