Análise dos sufixos –ança/-ença, -ância/-ência na obra do ...

An?lise dos sufixos ?an?a/-en?a, -?ncia/-?ncia na obra do simbolista Jo?o da Cruz e Souza

Andr?a Lacotiz1

1Departamento de Letras Cl?ssicas e Vern?culas ? Universidade de S?o Paulo (USP) Av. Luciano Gualberto 403 ? 05508-900 ? S?o Paulo ? SP ? Brasil

alacotiz@.br

Abstract. This paper studies the following suffixes: ?an?a/-en?a, -?ncia/?ncia, in Cruz e Souza?s work, objectiving to discribe the semantics values of their terminations; to detect if their meanings used nowadays occured int that epoch; to verify which ways they link with his etymology; to consider the aspects of production and to evaluate which way could be constructed the stylistic efects to the meaning of suffixes as well we have being used nowadays. Besides, to check if the words are deriving from latim or they were created based on others languages, specialty french.

Keywords. semantic; historical morfology; derivative suffixes

Resumo. Este artigo aborda os sufixos ?an?a/-en?a, -?ncia/-?ncia, na obra de Cruz e Souza, com o objetivo de descrever os valores sem?nticos de suas termina??es; detectar se os significados de hoje j? ocorriam naquela ?poca; verificar de que maneira eles se relacionam com sua etimologia; considerar os aspectos de produ??o e avaliar de que modo efeitos estil?sticos podem ter contribu?do para o significado de sufixos tal como os usamos hoje. Al?m disso, averigua se os voc?bulos s?o provenientes do latim ou foram criados com base em outras l?nguas, especialmente o franc?s.

Palavras-chave. sem?ntica; morfologia hist?rica; sufixos derivativos.

1. Introdu??o

Considerando-se que uma l?ngua transforma-se no decorrer dos s?culos, n?o podemos aceitar que os estudos hist?ricos sejam postos de lado. Existem lugares vazios na problematiza??o hist?rica quanto aos aspectos morfol?gicos, pois a Hist?ria nos mostra que a forma??o do l?xico no portugu?s brasileiro ? multidimensional.

Ainda hoje, muitos termos ou express?es possuem etimologia opaca, palavras carentes de estudo te?rico, o que fomenta a publica??o de bibliografias fantasiosas, de seriedade duvidosa sobre o assunto. Quantos termos ainda causam estranheza, ao compararmos sua etimologia ao seu uso contempor?neo? Como esses termos foram usados ao longo dos tempos? Na an?lise desse uso, certamente se encontram muitas das respostas que buscamos. Um caso evidente ? o estudo dos sufixos, cujo percurso diacr?nico ? enigm?tico, pelo fato de n?o haver nenhum estudo da deriva??o sufixal calcado num s?culo espec?fico.

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A polissemia de um sufixo ? facilmente detectada quando se comparam voc?bulos formados por uma mesma termina??o. Apesar disso, nem todas as nuances ocorreram em todas as ?pocas, nem todas as possibilidades se confirmaram: as gram?ticas hist?ricas apenas apontam sua classifica??o sem?ntica e as categorias por ele formadas, isto ?, substantivos, adjetivos, adv?rbios, verbos.

2. A sem?ntica dos sufixos e sua fun??o na forma??o de palavras

Qualquer leigo ou iniciante no estudo da gram?tica, ao abri-la para consultar os processos de forma??o de palavras, ir? se espantar com a quantidade de sufixos presentes na l?ngua portuguesa. Ainda, o emprego desses sufixos se relaciona ? mudan?a de classes gramaticais, processo pelo qual ? poss?vel a nominaliza??o de verbos e adjetivos, por exemplo. Entretanto, caso seja feita uma leitura atenta da gram?tica, ficar? a pergunta: por que existem tantos sufixos de valor semelhante se, pelo que parece, n?o h? altera??o sem?ntica significante pelo uso de uma ou outra part?cula constituinte de palavras? O que faz existir no l?xico a forma lembran?a e n?o "lembra??o", vingan?a e n?o "vinga??o"?

Sandman (1991:75-81) trata em sua obra dos bloqueios pertinentes ? forma??o de palavras, ao discutir as condi??es de lexicalidade de termos da l?ngua. De acordo com o autor, v?rios s?o os impedimentos respons?veis pela aus?ncia de palavras, como as apontadas no par?grafo anterior. Em geral, a exist?ncia de uma palavra, na l?ngua, impede o surgimento de outra de valor igual; embora o sitema possibilite uma forma nova, o uso promove e privilegia a j? existente. O autor delineia os seguintes casos de bloqueio:

a) bloqueio por derivados com sufixos de fun??o igual: *trancamento/tranca??o; *tombamento/tomba??o; *avalia??o/avaliamento, dentre outros;

b) bloqueio de formas complexas por formas simples ou outras formas complexas:

*rid?culo(subs.)/ridiculeza

ou

ridiculidade;

*ladr?o/roubador;

*sil?ncio/silenciosidade; *valia/valiosidade.

Por outro lado, Sandman tamb?m cita dois casos de insubordina??o ?s regras de produtividade lexical; o primeiro ? produto da for?a estil?stica, atrav?s da qual o conte?do daquilo que se quer transmitir seja feito com mais efici?ncia; o segundo, insere-se na linguagem infantil, j? que a crian?a tem internalizados os mecanismos lexicais, mas n?o os gramaticais.

Uma explana??o mais minuciosa dessas premissas foge ao escopo deste trabalho. Interessa-nos investigar o ponto em que o sistema virtual da l?ngua possibilita a exist?ncia de certos termos, ? medida que haja o bloqueio, ou, especialmente, quando existem formas paralelas, advindas da mesma base.

Casos h? em que o dicion?rio e o pr?prio uso registram termos como observ?ncia/observa??o, apar?ncia/apari??o. Sobre esses sufixos, ?an?a/-?ncia/-?ncia e ???o/-s?o, as gram?ticas assinalam o sentido de "a??o ou resultado dela"1 . Se os verbetes forem consultados no dicion?rio, saber-se-? que eles n?o t?m o mesmo significado: apar?ncia/apari??o, s?o ambos formados no latim, a partir da base ?par(e), oriunda do verbo latino par?o,es,ui,?tum,par?re (agregada ? preposi??o latina a-); observ?ncia/observa??o, possui a base ?serv-, relacionada ao verbo latino servo,as,?vi,?tum,?re (agregada ? preposi??o latina ob-).2

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Tais fatos mostram que os sufixos fazem mais do que alterar a classe gramatical de um termo. Faz-nos ver fortes ind?cios de que os sufixos carregam em si uma carga sem?ntica, vari?vel, que ? acrescida ? base. Sobre isso, Sandman (1989:30) demonstra o equ?voco existente na gramaticologia portuguesa "de que os afixos, principalmente os sufixos, s?o elementos semanticamente mais vazios do que, por exemplo, radicais (...)". O autor cita duas afirma??es existentes em diferentes gram?ticos:

"Ao contr?rio dos sufixos, que assumem um valor morfol?gico, os prefixos t?m mais for?a significativa..." (BECHARA, apud Sandman).

"Ao contr?rio dos prefixos que, como vimos, guardam certo sentido, com o qual modificam, de maneira mais ou menos clara, o sentido da palavra primitiva, os sufixos, vazios de significa??o (sic), t?m por finalidade formar s?ries de palavras da mesma classe gramatical." (ROCHA LIMA, apud Sandman).

Sobre tais asserttivas, Sandman cita, como exemplo contra-argumentativo, o sufixo ?ada, o qual n?o tem o mesmo significado em forma??es como: martelada `golpe de martelo', facada `pontada com a faca' (ibidem). Acrescentamos a esses exemplos, laranjada `suco de laranja', goiabada `doce de goiaba', goleada `grande quantidade de gols', dentre outros sentidos que o sufixo pode adquirir, em certos contextos.

Bas?lio (1987:8) escreve que atribuir ao sufixo a fun??o de mudar a classe gramatical de uma palavra n?o ? suficiente, mesmo porque existem processos de deriva??o sufixal em que n?o h? altera??o da classe de palavras, citando como exemplo o caso dos diminutivos ? mesa/mesinha, sapato/sapatinho, etc. Segundo a autora, os motivos que norteiam a forma??o de palavras constituem : "a utiliza??o da id?ia de uma palavra em uma outra classe gramatical; e a necessidade de um acr?scimo sem?ntico numa significa??o lexical b?sica"; aos quais se agrega o princ?pio de economia da l?ngua, centrado na efici?ncia do processo comunicativo (idem, p. 9, 10).

No que diz respeito ao processo comunicativo, Vilela (1954:54) aponta que a motiva??o para a forma??o de palavras permeia "as mudan?as constantes operadas no mundo que circunda o homem". Desse modo, "(...) o processo natural e normal de responder a todas as solicita??es do extraling??stico ? porque o mais econ?mico ? ? o que foge ? arbitrariedade e ao meramente convencional: a forma??o de palavras (...). Em cada palavra formada, h? algo de novo e algo de j? conhecido, descompon?vel apesar das altera??es sofridas no percurso derivativo...".

2.1. As poss?veis abordagens de um sufixo

Aceitas as afirma??es de que o sufixo possui significado e n?o apenas transporta a palavra de uma classe a outra, veremos agora o que contribui para sua polissemia. Segundo Viaro (2003), os sufixos n?o v?m tendo a aten??o necess?ria, pois as gram?ticas hist?ricas descrevem sua polissemia e produtividade sem se aterem a um s?culo espec?fico. Isso significa n?o reconhecer o l?xico como um organismo vivo, sujeito ? reelabora??o de muitas gera??es que nele colaboraram.

N?o desejamos afirmar aqui que o contexto pode modificar radicalmente o sentido de um termo. Sobre essa quest?o, Ullman (1977, p. 103) escreveu que "se as palavras n?o tivessem significado para l? dos contextos, seria imposs?vel compilar um dicion?rio". Existe um n?cleo sem?ntico s?lido, ao qual se agregam novas

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propriedades. Hegenberg (1974, p. 19,20) afirma que um termo s? ? compreendido, "quando se sabe os significados que ele poder ter (...) o uso de um termo depende do contexto apropriado (...) o contexto ? o da experi?ncia imediata(...)".

Ao nosso ver, um trabalho com enfoque diacr?nico deve observar a mudan?a articulada a fatores externos (sociais) e internos (estruturais). Sobre esse ponto, Br?al (1987, p. 45) denomina irradia??o certos fen?menos ling??sticos que fazem elementos materiais de um signo contribu?rem para com a apreens?o do elemento formal. Embora ele n?o deseje entrar na discuss?o se ambos os elementos pertencem ? mesma origem, quer "somente mostrar que ela pode nos levar a considerar como pertencente ao `elemento formal' letras ou s?labas tomadas a partir do `elemento material'".

Assim, segundo o autor, certos afixos podem n?o possuir em sua origem o significado que t?m hoje. Como exemplo, cita os sufixos gregos e latinos, formadores de diminutivos, os quais n?o davam a id?ia de diminui??o. Sobre tal fato, Br?al acrescenta que, a partir do momento em que esse sentido foi acrescido, in?meros voc?bulos foram criados. A irradia??o, portanto, agrega significados especiais, o que promove a propaga??o dessa nova nuance.

Em se tratando de ?inho/-zinho, entre a acep??o etimol?gica e os usos feitos desse sufixo, hoje, existe uma grande lacuna. Bassetto (2001:95,96), escreveu que o latim vulgar possu?a um car?ter muito mais concreto, conseq?ente da mundivid?ncia de seus falantes, orientada, sobretudo, pelos problemas materiais. Entretanto, por ser quase exclusivamente falado, "deve-se supor nessa comunica??o a ?nfase, a espontaneidade e a afetividade...". (...) "A afetividade transparece de modo particular atrav?s de palavras com sufixos diminutivos, bastante numerosas no latim vulgar, que deram origem a correspondentes rom?nicos, embora com perda do car?ter diminutivo." (Ibidem, p. 97)

Da mesma maneira, todos sabemos que o portugu?s tal como o conhecemos hoje ? o resultado de transforma??es ocorridas durante s?culos. Para conhecermos as etapas evolutivas de uma l?ngua, ? necess?rio um estudo pormenorizado de seus v?rios elementos constitutivos. Nesse estudo, ? preciso delimitar o papel do contexto e, mais, pontualizarmos o que entendemos por contexto.

Para isso, Ullman (1977:102-112) nos d? pistas. O autor cita que o contexto verbal n?o se restringe ?quilo que precede e antecede a palavra, mas pode abranger a p?gina, ou at? o livro todo. Al?m do contexto verbal, faz-se necess?ria a an?lise do contexto de situa??o, o qual significa, primeiramente, a situa??o efetiva de emprego da palavra; e, num dado mais amplo, todo o fundo cultural contra o qual ? posto o ato de fala.

Ainda segundo o autor, a sem?ntica hist?rica assegura que o significado completo e o tom de certas palavras s? podem ser captados se os colocarmos de novo no contexto cultural do per?odo. H? que se levar em conta as palavras-chave que resumem os ideais de uma determinada civiliza??o. De acordo com o postulado, "Todas as palavras, por muito precisas e inequ?vocas que possam ser, extrair?o do contexto uma certa determina??o que, pela pr?pria natureza das coisas, s? podem surgir em elocu??es espec?ficas.". (ibidem)

2.2. Contribui??es da Estil?stica

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Mediante as premissas at? aqui discutidas, podemos inferir que a reuni?o de significados a um termo, ou ? parte dele, surgem por necessidade extraling??stica ou por irradia??o. A etimologia sustenta parte dessa significa??o, podendo permanecer como n?cleo s?lido, primitivo. O contexto, por sua vez, modifica parte do significado, da? a necessidade de verificar o contexto cultural de um per?odo (contexto de situa??o). Resta-nos investigar a contribui??o de fatores estil?sticos.

Segundo Barbosa (1975:264,265), a deriva??o sufixal ? neol?gica "quando resulta de uma combinat?ria in?dita de signos, os quais, por sua vez, sintetizam uma express?o ao n?vel fr?sico". Podemos dizer, ent?o, que essa "combinat?ria in?dita de signos" resulta do sistema virtual da l?ngua, o qual por sua vez, desvia-se da norma padr?o. Dessa forma, o autor pode ou n?o intuir esses processos, com base no uso cotidiano de palavras lexicalizadas, das quais se perderam o ?timo, a significa??o de contexto, as met?foras, meton?mias.

A gama de significados presente nos sufixos e sua propriedade de substituir uma express?o fr?sica proporcionam vasta possibilidade produtiva, aut?noma em rela??o ? gram?tica. A escolha do autor se debru?a num conjunto de possibilidades, mas, de acordo com Caretta (2004:150):

(...) Para criar, entretanto, muitas vezes ? necess?rio desviar-se da forma padr?o. O desvio deve ser compreendido como tal; caso contr?rio, surge o erro. Desde que haja inten??o e expressividade, o desvio pode ser visto como cria??o e, a partir da?, o texto ? motivado, e o autor valorizado."

Outro ponto importante, segundo Caretta (ibidem, p.147), ? o fato de que essas cria??es lexicais surgem numa circunst?ncia espec?fica, prestam-se para expressar determinado conte?do, mas n?o chegar?o a fazer parte do dicion?rio. Essas id?ias refor?am a necessidade de considerar os aspectos de produ??o das obras e avaliar de que modo podem ter influenciado na cria??o de palavras ou no desenvolvimento de certos sufixos.

O s?culo XIX ? marcado pela diversidade ling??stica presente nas obras dos escritores, que seguiam as mais variadas formas de express?o liter?ria. Sobre essa variedade, Martins (1988:13) afirma que, "do conjunto da literatura oitocentista resulta (...) a impress?o das infinitas possibilidades expressionais de uma l?ngua em plena maturidade, male?vel aos mais diversos usos".

Em rela??o ao emprego de neologismos, a autora (ibidem, p.31) afirma que, no in?cio do s?culo XIX, n?o foi muito recorrente, acentuando-se nas ?ltimas d?cadas com os simbolistas, com o objetivo de aproximar a poesia da m?sica. Sobre Cruz e Souza, escreve que em sua obra, h? muitos neologismos, sobretudo, substantivos abstratos, criados pelo processo de deriva??o sufixal.

3. An?lise dos sufixos ?an?a/-en?a, -?ncia/-?ncia

Como dissemos anteriomente, os sufixos ?an?a/-en?a/-?ncia/-?ncia possuem, de acordo com a gram?tica, o significado de "Estado" ou "A??o ou resultado dela". Entretanto, a an?lise desses sufixos, na obra de Cruz e Souza, permitiu-nos captar outros sentidos. A partir de dados obtidos pelo Dicion?rio Houaiss, verificamos a etimologiafonte, isto ?, a palavra que deu origem ao verbete, assim como a base latina e seu

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