EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA EM SANTA CATARINA: A Comunidade do ...

EXPERI?NCIA QUILOMBOLA EM SANTA CATARINA: A Comunidade do Morro do Boi, Balne?rio Cambori?, Santa Catarina

Camila Evaristo da Silva1

Resumo: Neste texto pretendemos apresentar alguns resultados da pesquisa intitulada Experi?ncias das Popula??es de Origem Africana em Santa Catarina: culturas pol?ticas e sociabilidades, sob coordena??o do Prof. Paulino J F Cardoso. Nessa comunica??o pretendemos abordar aspectos da mem?ria e viv?ncias de moradores/as da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, localizada no munic?pio de Balne?rio Cambori?, em Santa Catarina. Atrav?s de entrevistas com lideran?as locais e apoiadores externos, buscamos acessar dimens?es de suas vis?es de mundo, hist?rias ausentes da mem?ria institucional do munic?pio.

Palavras-chave: Hist?ria, Mem?ria, Comunidade Quilombola, Balne?rio Cambori?, Santa Catarina.

Os tr?s reis se combinaram no altar se ajoelharam

foram falar pra Deus do c?u se podia coroar

Deus do c?u respondeu deixo o bom natal chegar.2

No presente texto abordamos uma faceta pouco conhecida de Santa Catarina: o mundo das comunidades quilombolas, em especial da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, localizada no munic?pio de Balne?rio Cambori?, distante oitenta quil?metros sentido norte de Florian?polis, Santa Catarina.

Fruto da pesquisa denominada Experi?ncias das Popula??es de Origem Africana no P?s-Aboli??o: Culturas Pol?ticas e Sociabilidades3, vinculada ao N?cleo de Estudos Afro-

1 Estudante de gradua??o em Hist?ria ? Licenciatura e Bacharelado ? pela UDESC. Bolsista PROBIC, vinculada ao N?cleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC). E-mail para contato: camilaevaristosilva@. 2 Terno de Reis. Entrevista de Sueli Marlete Leodoro cedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana Schlickmann em 2012. 3 Tal projeto, iniciado em 2010, sob coordena??o do Professor Paulino Cardoso, tendo contribui??es de diversos/as pesquisadores/as - graduandos/as e p?s-graduandos/as, objetiva dar visibilidade ?s popula??es de origem africana em Santa Catarina. Em 2011, por raz?es institucionais, o estudo passou a incorporar um novo eixo de investiga??o que se fez necess?rio e urgente: apreender aspectos das experi?ncias de comunidades negras

2

Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC), na produ??o deste

texto elaboramos uma interpreta??o das entrevistas realizadas com os/as moradores/as e

apoiadores/as externos/as, produzidas e recuperadas ao longo da investiga??o.

Buscamos abordar aspectos do cotidiano daquela Comunidade, dimens?es de suas

lutas por reconhecimento e expans?o da cidadania. Este estudo ? parte dos esfor?os de

diferentes pessoas e institui??es para quebrar a invisibilidade destes/as moradores/as

afrodescendentes, e contribuir para a melhoria de suas condi??es de vida, acesso a servi?os

p?blicos de qualidade, articulado a regulamenta??o e reconhecimento do territ?rio onde

vivem.

Os versos que servem de ep?grafe a este artigo fazem parte das lembran?as que

Sueli Leodoro, principal lideran?a local, possui das antigas festas do Terno de Reis dos seus

tempos de crian?a. Recorda??es de uma Morro do Boi ainda rural, cercada de p?s de caf?,

engenhos de farinha e a??car. Estas lembran?as remetem, portanto, a uma mem?ria

compartilhada dos/as moradores/as daquele espa?o, e nos permite vislumbrar experi?ncias e

vis?es de mundo ausentes na mem?ria institucional do munic?pio de Balne?rio Cambori?,

mas que, no entanto, os/as constituem como comunidade e embalam os sonhos de alguns deles/as de serem reconhecidos como remanescentes de quilombos.4

rurais, atualmente denominadas Comunidades Quilombolas, particularmente, a localizada no Morro do Boi, Balne?rio Cambori?, SC. A fim de contribuir com a regulamenta??o e o reconhecimento do territ?rio, com o acesso aos direitos. De tal modo que possamos refletir sobre a politiza??o/mobiliza??o da mem?ria e da hist?ria nas lutas dos pobres e miser?veis deste pa?s. Em 2010 j? haviam sido iniciados os estudos acerca da tem?tica, com o projeto Negros Invis?veis: Um estudo sobre a Comunidade Quilombola do Morro do Boi, tamb?m vinculado ao NEAB/UDESC. Este estudo, iniciado em 2010, resultou em 2012 no Trabalho de Conclus?o de Curso de Mariana Schlickmann, intitulado Entre o campo e a cidade: mem?rias, trabalho e experi?ncias na comunidade do Morro do Boi, Balne?rio Cambori? - SC. Mariana em seu TCC, assim como ao longo da pesquisa, aborda as experi?ncias dos sujeitos hist?ricos da hist?ria da Comunidade do Morro do Boi, a apresentar os moradores, suas hist?rias de vida, e, a partir da?, conhecer sobre a comunidade e seu cotidiano desde os fins do s?culo XIX. Para al?m da quest?o do acesso ? terra, o texto traz o cotidiano e as lembran?as de uma comunidade de pequenos agricultores de origem africana na regi?o norte de Santa Catarina. 4 Neste estudo utilizamos como fontes entrevistas dos/as moradores/as cedidas a n?s e a demais pesquisadores/as. Mais especificamente, tais entrevistas: com Ac?cio Siqueira cedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana Schlickmann em 2012, com Sueli Marlete Leodoro cedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana Schlickmann em 2012, com Margarida Jorge Leodoro cedida ? Mariana Schlickmann em 2011, com Ana Elisa Ribeiro de Souza Schlickmann cedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana Schlickmann em 2012 e com Margarida Jorge Leodoro, Ac?cio Siqueira e Altair Almiro Leodoro cedida ? Jos? Bento Rosa da Silva e Ana Elisa Schlickmann em 2008. Procuramos utilizar lembran?as ainda n?o exploradas, palavras que foram gravadas e transcritas e que, agora, fazem conhecimento ao mundo n?o pertencente ? cultura oral.

3

REMANESCENTES DE QUILOMBOS

Em terras brasileiras, o termo quilombo designa desde o s?culo XVII (REIS; GOMES, 1996:11) o local de ref?gio de cativos/as fugidos/as. No Brasil, durante todo o per?odo escravocrata, houve quilombos de diversos tipos e forma??es, ef?meros ou duradouros. Desde aqueles formados por alguns cativos/as fugidos/as at? aqueles compostos por centenas, caso do lend?rio Quilombo dos Palmares5.

Hoje remanescentes de quilombos n?o necessariamente s?o descendentes daquelas pessoas cativas que resistiram ? escravid?o por meio da fuga e da forma??o de grupos de escravos fugidos, como sugerem as diversas defini??es ? cl?ssicas ou n?o - e o imagin?rio que se tem sobre quilombos. Pessoas de origem africana ascendentes dos/as atuais moradores/as da regi?o do Morro do Boi, ao que sugere a documenta??o, constru?ram o espa?o do Morro do Boi como seu territ?rio por meio de teias de rela??es com seus/suas senhores/as, de modo que, quando libertos/as, vieram a ocupar tal regi?o.

De fato, a Comunidade do Morro do Boi foi certificada como remanescente de quilombo pela Funda??o Cultural Palmares, vinculada ao Minist?rio da Cultura, a partir de outros referenciais constitu?dos pelos militantes do Movimento Negro a ?poca da Assembleia Nacional Constituinte.

O termo quilombo, advindo do artigo 68 do Ato das Disposi??es Constitucionais Transit?rias, da Constitui??o Federal de 1988, que assegura "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras ? reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os t?tulos respectivos", passou por um processo de ressemantiza??o (SCHLICKMANN, 2012:18), de modo a tamb?m incluir "grupos que desenvolveram pr?ticas cotidianas de resist?ncia na manuten??o e reprodu??o dos seus modos

5 "Palmares foi o mais duradouro, extenso e numeroso quilombo da hist?ria do Brasil". LARA, Silvia Hunold. Do singular ao plural: Palmares, capit?es-do-mato e o governo dos escravos. In: REIS, Jo?o Jos?; GOMES, Fl?vio dos Santos (org.). Liberdade por um fio: hist?ria dos quilombos no Brasil. S?o Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 98.

4

de vida caracter?sticos e na consolida??o de um territ?rio pr?prio"6 (BUTI; RAMOS, 2011:8). N?o mais se referindo apenas a grupos "constitu?dos de movimentos insurrecionais ou rebelados" (BUTI; RAMOS, 2011:8).

Nestes termos, segundo Ana Elisa Schlickmann7, ativa volunt?ria atuante na Comunidade, esta preenche os requisitos legais dos instrumentos jur?dicos da titula??o, previstos no Decreto 4887/03, institu?do pela Presid?ncia da Rep?blica, que "regulamenta o procedimento para identifica??o, reconhecimento, delimita??o, demarca??o e titula??o das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos"; no que disp?e o Decreto n? 6040/07 que trata da Pol?tica Nacional de Desenvolvimento Sustent?vel dos Povos e Comunidades Tradicionais, regidos pela Constitui??o Federal de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposi??es Constitucionais Transit?rias.8

SCHLICKMANN (2012) e BUTI (2011) versam sobre a emerg?ncia da Comunidade. Para seu estudo, Mariana Schlickmann contou com depoimento do antrop?logo Rafael Buti, que, mais concluiu o Relat?rio Antropol?gico de Caracteriza??o Hist?rica, Econ?mica e S?cio-Cultural da Comunidade.

Porto Belo, no s?culo XIX distrito de Tijucas, foi o local de onde migraram para a regi?o do Morro do Boi os ascendentes de dos/as atuais moradores/as da Comunidade. ? sabido, de acordo com a A??o de invent?rio dos bens de Jo?o Machado Airoso, datada de 1874, transcrita pelo pesquisador Jos? Bento Rosa da Silva, que os ascendentes, chamados Joaquina e Delfino, eram cativos de Jo?o Airoso, que pertencia terras na regi?o do Morro do Boi. (SCHLICKMANN, 2012:23).

O nome, Morro do Boi, no entanto, ? visto, at? onde se tem conhecimento, em documentos oficiais, pela primeira vezem uma Carta do Presidente da C?mara de Florian?polis, datada de 1835. "Nela, o ent?o presidente da C?mara se referia ? estrada que

6 Cita??o oriunda de "Reuni?o ocorrida no Rio de Janeiro, cujo documento final foi assinado por Jo?o Pacheco de Oliveira (presidente), Eliane Cantarino O'Dweyer (tesoureira), Jo?o Baptista Borges Pereira (USP), L?cia Andrade (Comiss?o Pr?-?ndio de S?o Paulo), Ilka Boaventura Leite (NUER/UFSC), Dimas Salustino da Silva (SMDDH e UFMA), Neusa Gusm?o (UNESP)". 7 Ana Elisa Ribeiro de Souza Schlickmann ? uma dos agentes externos que contribuem com a Comunidade para a sua titula??o. Formada em Hist?ria e Direito, foi uma das personagens que influenciou a funda??o da Associa??o Quilombola do Morro do Boi, sobre a qual falaremos mais adiante. ? progenitora de Mariana Schlickmann. 8 Depoimento de Ana Elisa Ribeiro de Souza Schlickmann cedido a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana Schlickmann, 2012.

5 ligava o rec?m-criado munic?pio de Porto Bello ao povoado de Cambori?". (BUTI; RAMOS, 2011:11).

Figura 1: ?rvore Geneal?gica da Comunidade (SCHLICKMANN, 2012:26).

Delfino e Joaquina, segundo a ?rvore geneal?gica, s?o ascendentes a um grupo dos/as moradores/as da Comunidade. Parte deste grupo, os/as descendentes de Margarida Jorge Leodoro e o j? falecido Almiro Leodoro, ? que requerem a titula??o de suas terras. Atualmente o processo est? em tramita??o.

Margarida Jorge Leodoro, carinhosa e respeitosamente chamada por todos/as de Dona Guida, vi?va de Almiro Leodoro - que ? bisneto do casal Joaquina e Delfino -, e as fam?lias de seus filhos que moram no Morro do Boi, Altair, Adelair, Sueli, Reginalda, Laurete, Almiro e Eliete, a fim de garantirem permanentemente suas terras, fundaram em 2008 a Associa??o Quilombola do Morro do Boi, condi??o sine qua non para dar

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download